Comissão da Verdade: 8 anos depois, ninguém foi levado ao banco dos réus
Das 377 pessoas que foram acusadas por crimes na ditadura militar, a grande maioria (269) já morreu
O delegado Carlos Alberto Augusto ocupou na ditadura (1964-1985) o cargo de investigador no Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops/SP), um dos braços da repressão política do regime. Trabalhou sob as ordens de célebres torturadores, como o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra (ídolo do presidente Jair Bolsonaro, por sinal), e ganhou o apelido de “Carlinhos Metralha” pelo hábito de andar pelos corredores portando uma arma do tipo. Augusto só sofreu as consequências de ter colaborado com o regime mais de quarenta anos depois. Foi denunciado pelo Ministério Público Federal em 2012 por participação no sequestro do ex-fuzileiro naval Edgar de Aquino Duarte (desaparecido desde 1973) e se tornou o primeiro ex-agente condenado pelo Judiciário brasileiro por violações na ditadura, em sentença proferida pela 9ª Vara Criminal Federal de São Paulo, em 2021. O episódio poderia abrir um precedente histórico, mas, em pouco tempo, houve uma reviravolta. Em fevereiro último, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região aceitou um recurso da defesa e extinguiu a punibilidade por prescrição dos crimes.
A história é mais uma a exemplificar a dificuldade do Brasil em punir agentes da ditadura. Em 2014, a Comissão Nacional da Verdade concluiu um relatório no qual listava 377 pessoas apontadas como perpetradoras de crimes contra os direitos humanos. Segundo o levantamento do Instituto Vladimir Herzog feito para Veja, 269 já morreram sem ter se tornado réus na Justiça, duas delas recentemente: o delegado gaúcho Pedro Seelig, o “Fleury dos Pampas” (em 9 de março, aos 87 anos), e José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, um agente infiltrado em organizações de esquerda (15 de março, aos 81 anos). Sete anos depois, o MPF acumula mais de cinquenta ações penais contra nomes da lista que foram rejeitadas ou arquivadas pela Justiça.
Entre os 98 vivos (e dez de que não se tem informação) há outros casos simbólicos. Um deles é o de Wilson Luiz Chaves Machado, o coronel que sobreviveu ao atentado do Riocentro, em 1981, uma tentativa fracassada dos militares de incriminar opositores e justificar o endurecimento da repressão. Ele foi denunciado pelo MPF em 2014 e absolvido pelo Superior Tribunal de Justiça em 2019. Jacy Ochsendorf e Souza, apontado como responsável pela morte do deputado Rubens Paiva, foi denunciado em 2014, mas o caso acabou sendo trancado pelo STF após recurso da defesa e está parado desde 2018. Três acusados na mesma ação já morreram.
O nó górdio da situação está na interpretação sobre o alcance da Lei da Anistia. Anunciada em 1979 como “ampla, geral e irrestrita”, tanto para agentes do regime quanto para opositores, ela tinha o objetivo de distender o país e favorecer a transição à democracia. O MPF tenta fazer valer o entendimento do direito internacional de que as violações da ditadura são crimes contra a humanidade, o que as tornam imprescritíveis e não contempladas pela Lei da Anistia. Com base nessa interpretação, o Brasil já foi condenado duas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por não punir ex-agentes da ditadura.
A despeito do esforço do MPF, as mais altas instâncias da Justiça no país não têm concordado com esses argumentos. Em 2010, ao julgar alegação da OAB de que a Lei da Anistia estava em desacordo com a Constituição de 1988, o STF entendeu que ela seguia válida. Outra ação nesse sentido, do PSOL, está no tribunal há cinco anos e nunca foi pautada. “Não é uma questão jurídica, é falta de vontade política. O STF insiste em uma jurisprudência ilegítima”, diz Marlon Weichert, procurador do MPF que atua na área de crimes contra a humanidade.
Dessa forma, o Brasil prossegue sendo uma exceção entre os principais vizinhos sul-americanos, que levaram seus criminosos ao banco dos réus. O Chile teve centenas de condenados, enquanto na Argentina a cifra superou a casa de milhares. “São países que instalaram comissões para apurar os crimes imediatamente após o fim do regime”, afirma Gabrielle Abreu, coordenadora de Memória e Justiça do Instituto Vladimir Herzog. Para ela, o cenário ficou ainda mais complicado com a ascensão do presidente Jair Bolsonaro (PL), que enaltece publicamente a ditadura. Na semana que vem, aliás, o golpe completa seu 58º aniversário. Vale conferir como o presidente fará referências à data. Nos anos anteriores, ele fez questão de celebrar a “revolução”.
Na perspectiva atual, nada indica que haverá mudanças na punição dos criminosos. No caso de Carlinhos Metralha, o MPF deve levar o processo ao STJ, mas, pelo histórico, a iniciativa terá pouquíssimas chances de prosperar. Também é difícil imaginar que os agentes vivos, todos com mais de 70 anos, sejam levados aos tribunais. O mais provável é que o Brasil siga com a pecha de ser um país que tem dificuldade para lidar com o passado autoritário e as memórias incômodas dos anos de chumbo da ditadura.
Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782