Foi no apagar das luzes, como costumavam dizer os antigos locutores esportivos de rádio. No final de 2023, a Câmara finalmente aprovou a regulamentação do mercado de apostas esportivas on-line, as chamadas bets, cuja lei foi sancionada na sequência pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva. O Ministério da Fazenda, de Fernando Haddad, teve papel essencial no jogo, criando regras para melhorar a segurança do negócio, tanto para empresas quanto para apostadores, e abrindo espaço à tributação do setor, que pode render até 15 bilhões de reais em impostos e outorgas em 2024, segundo as estimativas. Parecia tudo certo até que alguns estados entraram em campo de forma apressada, dispostos a disputar com a União uma fatia dessa bolada. Técnicos da pasta de Haddad já apitaram a ilegalidade e se preparam para brecar esse tipo de jogada.
Enquanto todos aguardavam novos lances do Ministério da Fazenda, que estipulou um período de transição de seis meses para poder definir detalhes do regramento, o governo federal e as empresas foram pegas de surpresa por iniciativas dos governadores Ratinho Júnior (PSD), do Paraná, e Cláudio Castro (PL), do Rio. Eles começaram a enviar notificações às empresas exigindo o pagamento de uma outorga de 5 milhões de reais para que possam vender suas apostas nesses estados. Os avisos vieram acompanhados de ameaças de veto a operações e até mesmo a ações de marketing. A investida provocou uma correia de tensão que chegou até os clubes de futebol, hoje muito dependentes do patrocínio das companhias de apostas. O receio dentro do mercado é que as ações estaduais provoquem uma indesejada instabilidade jurídica, justamente no momento em que, após cinco anos de espera (a lei que liberou a loteria das bets é de 2018), a União assumiu sua responsabilidade de juiz e passou a apitar as regras da partida.
Os governos do Paraná e do Rio se escoram numa brecha para tentar lucrar com o negócio das bets — no caso, uma decisão de 2020 do Supremo Tribunal Federal que acabou com o monopólio da União sobre a exploração das loterias. “Só fomos mais céleres que a União”, afirma Daniel Romanowski, diretor-presidente da lotérica paranaense, a Lottopar. Além de Rio e Paraná, o governo da Paraíba já abriu credenciamento e o de Minas criou sua própria bet. Entre os atrativos oferecidos pelos estados está o valor da licença, já que a taxa nacional pode custar seis vezes mais, chegando a 30 milhões de reais. O avanço no negócio tem potencial não apenas para provocar uma confusão jurídica, mas uma guerra fiscal. Para o presidente da Associação Nacional de Jogos e Loterias (ANJL), Wesley Cardia, compete à Fazenda regrar rapidamente o mercado e assim impedir situações, segundo ele, ilegais. “Como um estado pode legislar sobre publicidade, por exemplo? E como operadores licenciados no Rio podem vender para o país inteiro? Se essa regra valer, não haverá motivos para se cadastrar nacionalmente”, critica. Advogados de bets alertam ainda para o risco de outros estados entrarem na disputa com valores ainda menores de outorga e de alíquotas de imposto de renda sobre o Gross Gaming Revenue (GGR), que é a diferença entre o valor arrecadado com as apostas e o pago em prêmios. A União prevê taxas de 12% — o Rio cobra 5%, e o Paraná, 6%.
A discussão está quente no Ministério da Fazenda, que promete agir. Segundo apurou a reportagem de VEJA, a pasta prepara a edição de ao menos doze portarias para reforçar que a regulamentação está em curso e que, por hora, as bets não podem ser alvo de sanções por gestores estaduais. Até o fim desse período, a equipe de Haddad promete entregar a regulamentação completa, incluindo as normas para emissão de outorgas estaduais de forma que não canibalizem as federais. Além disso, há a preocupação de criar um sistema de fiscalização capaz de barrar tentativas de fraudes fiscais, como a de uma bet com licença local permitir apostas de jogos no restante do país. No Rio, por exemplo, o sistema da Loterj exige apenas uma declaração do apostador sobre o seu endereço.
Depois de anos operando em uma zona cinzenta, as bets e a sociedade brasileira esperam de forma urgente, mas sem atropelos, uma definição clara e definitiva sobre o que irá valer. O número de empresas que responderam ao chamado de interesse da Fazenda (134) mostra que o mercado não quer mais ficar fora do campo legal. De acordo com a Fazenda, as loterias estaduais podem atuar no mesmo campeonato, mas os limites ainda serão definidos. Por isso, os que avançaram no jogo antes de a bola rolar com as novas regras estipuladas correm o risco de ficar impedidos.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879