Ronaldo está de volta ao Cruzeiro quase três décadas depois de iniciar sua trajetória brilhante como jogador profissional, aos 16 anos, contra a Caldense, diante de pouco mais de 2 000 testemunhas históricas em Poços de Caldas. O “Fenômeno” é agora o dono do time — e não mais no sentido figurado. Ele comprou 90% das ações do clube mineiro, que pela terceira vez consecutiva disputará a Série B. O ex-craque promete alçar a equipe ao topo novamente ao inaugurar uma nova era, a das Sociedades Anônimas do Futebol, ou simplesmente SAFs. “Tenho muito a retribuir, quero levar o Cruzeiro aonde ele merece estar”, diz o camisa 9, que comprou o clube por 400 milhões de reais, a serem pagos em cinco anos, mas terá também de assumir uma dívida bilionária.
A experiência como cartola não é inédita. Ronaldo é sócio majoritário do Real Valladolid, da Espanha, mas não evitou o rebaixamento do time à Segunda Divisão. Há décadas, o modelo de clube-empresa é padrão na Europa. O atual campeão continental, o Chelsea, por exemplo, foi comprado em 2003 pelo magnata russo Roman Abramovich e desde então tornou-se uma potência. Por aqui ainda impera o modelo de associação sem fins lucrativos. Com a aprovação de uma lei sancionada em agosto do ano passado, contudo, há novos ventos. O Botafogo, recém-promovido à Série A, deve ser o próximo a ter um dono: tem pré-acordo com o americano John Textor, dono da Eagle Holdings, empresa do ramo da tecnologia, cinema e esporte, e sócio do Crystal Palace, da Inglaterra. A XP Investimentos atuou como consultora nas negociações tanto para botafoguenses quanto para cruzeirenses e já busca novas prospecções.
Há evidentes vantagens de se tornar uma SAF, atalho para a construção do que se convencionou chamar de “clubes-empresa”. A gestão será mais profissional e transparente, com auditoria anual e a obrigatoriedade de serem montados um conselho de administração e um conselho fiscal. O mecanismo de sociedade anônima facilitará a quitação de dívidas, ancorado em um regime tributário vantajoso. Os impostos serão recolhidos em cima de 5% do faturamento nos primeiros cinco anos sem incidência sobre a venda de direitos de jogadores — depois disso, a taxa cai para 4%, aí, sim, com incidência sobre as transferências. As garantias, rigidamente controladas, certamente abrirão portas para investidores, mais seguros de seus passos. É caminho para a reinvenção do futebol brasileiro, atavicamente amador e viciado politicamente, mas há riscos. Como em qualquer empresa, a má gestão pode significar falência, como aconteceu com o Parma, da Itália. Fãs de gigantes em crise, como Milan e Manchester United, atestam que a chegada de aporte estrangeiro, seja russo, seja chinês ou árabe, não é garantia de sucesso.
A mudança, do ponto de vista dos torcedores, tende a ser positiva também. A possibilidade de muitos clubes se fortalecerem financeiramente talvez seja a única saída para barrar o atual reinado dos ricaços Palmeiras, Atlético-MG e Flamengo. “Clubes grandes com boa saúde financeira certamente não adotarão as SAFs agora, pois há rejeição e muito conservadorismo”, diz Eduardo Carlezzo, advogado especializado em direito desportivo, que participou da elaboração da lei. “Mas, conforme a roda for girando, times como Internacional, Santos, Fluminense e São Paulo podem ser empurrados a fazer esse tipo de operação para não ficarem para trás.” Há, desde já, intensa movimentação nos bastidores para atração de capital estrangeiro, como já ocorre na Europa. O futuro é promissor, desde que o novo paradigma seja tratado com zelo inédito.
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2022, edição nº 2771