Congresso e governo ampliam cerco ao vale-tudo digital, mas crise abre novos desafios
Projeto aprovado pela Câmara marca uma vitória. Problema da segurança online, no entanto, não será solucionado apenas com novas legislações

O projeto de lei 2.630, de 2020, que ficou conhecido como o “PL das Fake News”, perambulou pela Câmara durante quase cinco anos, despertou todo tipo de resistência, a maioria sob o discurso de que ele ameaçava a liberdade de expressão. Ficou mais tempo nas gavetas do que em discussão até ser enterrado de vez no ano passado pela absoluta dificuldade de um tema como a regulação das redes sociais avançar no Congresso em meio ao ambiente político polarizado. Na última quarta, 20, no entanto, a discussão que não saía do lugar, enfim, andou. Em decisão histórica, a Câmara dos Deputados aprovou um marco regulatório que obriga as plataformas a assumir a responsabilidade pela proteção de menores de idade na internet. O projeto de lei 2.628, de 2022, que ganhou a alcunha de “ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) Digital” ou de “PL da Adultização”, originalmente elaborado pelo senador Alessandro Vieira (MDB-SE), foi alterado pelos deputados e voltou ao Senado, onde havia sido aprovado em 2024. O avanço na tramitação marca uma vitória em meio à indignação social com a erotização de jovens no ambiente virtual e a disparada de casos de pornografia infantil nas redes.
A aprovação do projeto não foi simples. Mesmo o combate à exploração infantil nas redes sendo um tema consensual, houve resistência da oposição bolsonarista, em especial sobre os mecanismos de aplicação da lei — o temor era dar poder excessivo ao governo e permitir censura, o que foi atenuado por mudanças do relator, Jadyel Alencar (Republicanos-PI), como a previsão de um órgão regulador autônomo e a retirada de pontos que a oposição considerava subjetivos na definição do que era conteúdo ofensivo. A proposta aprovada tem 41 artigos, que passam pela definição das empresas afetadas pela lei, o rol de conteúdos ilegais ou inadequados, a privacidade de dados de usuários, o controle de idade para uso das redes sociais e sanções por descumprimento das regras. Segundo o texto, as plataformas devem tomar “medidas razoáveis” para mitigar a distribuição de conteúdo a menores de idade e estão proibidas de praticar “a monetização e o impulsionamento de conteúdos que retratem crianças e adolescentes de forma erotizada ou sexualmente sugestiva ou em contexto próprio do universo sexual adulto”. Também fica vedado o “perfilamento” das atividades de menores para fins de direcionamento de publicidade. Outra medida é criar ferramentas para que os pais controlem o acesso dos filhos.

A aprovação foi impulsionada por um vídeo do youtuber Felipe Bressanim Pereira, o Felca, que foi visto por quase 50 milhões de pessoas e expôs a dinâmica da exploração infantil nas redes. A onda também ajudou o governo, que vai enviar ao Congresso dois projetos com a intenção de colocar as big techs sob rédeas curtas em duas frentes: sobre os conteúdos que publicam e sobre a forma como exercem sua atividade econômica no país.
O primeiro projeto estabelece às plataformas digitais o “dever de prevenção” em relação a comportamentos flagrantemente criminosos nas redes. O texto impõe a obrigação de monitorar e remover, ativamente, publicações que caracterizem pornografia infantil, sexualização de menores de idade e incitação ao suicídio ou à automutilação — em boa parte, medidas previstas no projeto aprovado na Câmara —, mas também inclui golpes e fraudes cibernéticas, violência contra a mulher, apologia ao terrorismo, falsidade ideológica de autoridades e órgãos públicos e atentados à democracia e ao Estado. Ficaram de fora os delitos ligados à desinformação e contra a honra, como calúnia e difamação, que devem ser analisados individualmente pelos moderadores e podem ser judicializados pelos usuários.
Um ponto que pode levantar controvérsias será sobre quem vai aplicar a lei. Para fazer valer as regras, o projeto prevê o fortalecimento da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), órgão fundado em 2020 e responsável, hoje, por garantir o tratamento adequado das informações pessoais dos brasileiros em todas as esferas públicas e privadas. Rebatizada de Agência Nacional de Proteção de Dados e Serviços Digitais, a entidade receberá um robusto reforço de mais de 200 funcionários — praticamente dobrando o quadro atual, em concurso público que já está em andamento — e será encarregada de fiscalizar se as plataformas estão adotando os mecanismos adequados à moderação de conteúdo. Em caso de descumprimento generalizado das regras, as sanções vão desde advertências e multas até a suspensão temporária da rede social em território brasileiro.
A escolha da ANPD para a missão representa um avanço em relação ao “PL das Fake News”, que propunha a criação de um colegiado, cujas atribuições e competências opacas levantaram questionamentos pertinentes sobre o poder do Estado na regulação das redes. “Criar instituições no Brasil não é uma tarefa simples, e nós já demonstramos a expertise e a capacidade de garantir uma atuação técnica na proteção digital dos brasileiros”, diz Miriam Wimmer, diretora da ANPD.

Em elaboração desde o ano passado, o projeto passa por ajustes na Esplanada dos Ministérios e, até quinta 21, ainda não havia sido divulgado na íntegra. Independentemente da versão final, o governo não terá vida fácil para aprová-lo. De imediato, a proposta terá de superar a muralha bolsonarista na Câmara, que atribui a qualquer tentativa de regulação a pecha de censura. Despindo o tema de rótulos ideológicos, há válidas preocupações com a garantia da liberdade de expressão dos internautas e o risco de instrumentalização e abuso por parte do Executivo. Para especialistas, uma legislação eficiente deve priorizar critérios objetivos. “A lei deve definir o que são situações de risco, pressionar as plataformas a ajustar seus algoritmos de moderação e garantir que o usuário saiba por que uma publicação sua veio a ser removida”, diz Rafael Zanatta, diretor da ONG Data Privacy Brasil. Exemplos de leis que seguem esses princípios e são capazes de combater os crimes virtuais sem exceder as atribuições do Estado vieram nos últimos anos da Austrália e de países europeus (veja o quadro).
Em paralelo à moderação de conteúdo, o governo tem outro projeto, com foco na regulação comercial das big techs no país. Na mira estão cinco das seis empresas mais valiosas do planeta: Microsoft, Apple, Google, Amazon e Meta, as “Big Five” do Vale do Silício. No Brasil e no mundo, as gigantes tecnológicas são investigadas por práticas econômicas predatórias, como barreiras à concorrência em lojas de aplicativos, favorecimento a métodos próprios de pagamento e prejuízo à competição em anúncios e sistemas operacionais. A ideia da lei, gestada pelo Ministério da Fazenda, é ampliar a estrutura do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que media conflitos de natureza empresarial e pode sancionar companhias por abuso de poder de mercado.

O passo inicial para a regulação mais dura no Brasil já havia sido dado, em junho, pelo Supremo Tribunal Federal. Em decisão histórica, a Corte derrubou parcialmente a blindagem das plataformas digitais, previstas na versão original do Marco Civil da Internet, e as tornou responsáveis por um rol de crimes cometidos por usuários, como sexualização de menores, assédio sexual, pornografia ilegal, incitação a automutilação e suicídio e apologia ao terrorismo. Na última semana, o Judiciário decretou a prisão preventiva do influenciador Hytalo Santos, investigado pelo Ministério Público da Paraíba por exploração sexual infantil e tráfico humano. Santos ficou sob escrutínio público após o vídeo de Felca mostrar como ele explorava crianças e adolescentes vestindo roupas curtas, fazendo danças provocativas em festas com bebidas alcoólicas e falando sobre sexualidade. Na última semana, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, se reuniu com produtores de conteúdo digital para promover a pauta do combate a crimes virtuais e defendeu o incentivo à criação de varas e promotorias de Justiça especializadas em delitos digitais.
Cabe ressaltar que os projetos em curso não deixam de lado as responsabilidades da família — inclusive em suas próprias redes sociais. Cada vez mais cresce a preocupação sobre os perigos do “sharenting”, o compartilhamento excessivo de fotos, vídeos e informações sobre os filhos por parte dos pais e responsáveis, colocando os pequenos sob risco de superexposição e abordagem por predadores online. Para especialistas, além da aprovação de regulações eficazes sobre as big techs, a solução envolve investir em educação digital em todas as camadas da sociedade. “A tutela de menores é uma obrigação multidisciplinar, pautada no tripé entre família, Estado e sociedade. Cabe ao poder público promover a educação, e às plataformas, fornecer as informações necessárias para fortalecer as boas práticas na internet”, explica Renato Opice Blum, professor de direito digital na ESPM.

Em que pese o louvável esforço das autoridades na briga para enquadrar as plataformas digitais na lei, o problema da segurança online é complexo e não será solucionado apenas com novas legislações — são necessários uma conscientização constante sobre riscos e proteção e um amplo esforço estatal para incluir toda a população na nova era digital. De qualquer forma, a sinalização de que a internet não é uma terra sem lei já é um bom começo.
Publicado em VEJA de 22 de agosto de 2025, edição nº 2958