Quando dois prédios ruíram no Rio de Janeiro matando 24 pessoas, em 12 de abril, os holofotes se voltaram para os descalabros praticados na até então desconhecida favela da Muzema, encravada nas encostas da Zona Oeste. O esfacelamento dos edifícios feitos à base de material de segunda escancarou a atividade imobiliária da milícia que se apossou da área — ou ela própria constrói, ou cobra uma taxa de quem empreende em seu território. Como sempre ocorre no enredo de tragédias como essa, gestadas sob um misto de condescendência e inação, as autoridades apareceram consternadas e cheias de energia para pôr ordem na casa. A prefeitura planeja a demolição de 81 edifícios irregulares no condomínio dos desmoronamentos e a Justiça vetou qualquer construção na favela (o que, aliás, a lei já proíbe por ser ali uma zona de proteção ambiental). Mas as engrenagens do esquema já voltaram a funcionar — e novos prédios começaram a subir.
A reportagem de VEJA circulou na favela, que abriga mais de 5 000 pessoas, e verificou quatro edifícios com as obras a pleno vapor ou em fase de acabamento. Dois deles não ficam tecnicamente localizados dentro do condomínio Figueiras do Itanhangá, o local da tragédia, mas colados ao portão de entrada, um de frente para o outro. No primeiro, de oito andares, os trabalhos na portaria estão no início, enquanto operários pintam a fachada. Um detalhe pitoresco chama atenção. Vê-se afixada em uma das paredes uma notificação oficial — rasgada e completamente ignorada — que avisa: “A prefeitura da cidade do Rio de Janeiro determina a desocupação imediata dos imóveis com a retirada do material que porventura estiver dentro dos mesmos”. Mas o material continua a chegar. Às 11 horas de uma segunda-feira, havia um intenso entra e sai de caminhões carregados de cimento e madeira para fazer erguer o prédio do outro lado da rua, ainda um esqueleto. Circulavam sem medo de ser incomodados. E não foram.
O fato de as edificações brotarem uma atrás da outra — a 300 metros dali há mais duas geminadas com três andares e vigas elevadas que sugerem altura final bem maior — significa que o Estado está perdendo a guerra contra os fora da lei que mandam naquele naco da cidade. Mesmo com toda a exposição que os criminosos tiveram após a tragédia, eles seguem firmes no comando. Segundo relatórios da Polícia Civil e do Ministério Público do Rio, nenhuma transação imobiliária é fechada ali sem a concordância dos milicianos — e nada mudou com o colapso das estruturas há pouco mais de um mês. Em um condomínio vizinho ao dos prédios que caíram, três moradores relataram que a quadrilha fez uma espécie de recenseamento, exigindo nome completo e número de CPF de porta em porta. É uma iniciativa para reforçar o controle sobre o pagamento da “taxa de segurança” que as famílias desembolsam para viver na Muzema. E os milicianos já avisaram: o preço, que a depender do número de habitantes por domicílio bate os 250 reais por mês, vai aumentar.
O poder público pouco se aventura na favela e, quando o faz, sofre diante da bandidagem armada e conhecedora de todos os becos e ruelas. A única ação policial efetiva contra os marginais que prosperam na área há pelo menos uma década (por sinal o mesmo grupo que domina a favela de Rio das Pedras, onde nasceu a primeira milícia carioca) deu-se apenas em janeiro deste ano, levando oito à prisão. Tal é a reputação da gangue local que a operação recebeu o nome de Os Intocáveis. Em nota, a prefeitura afirma que fiscaliza a área, agora com ainda “mais intensidade”. Os funcionários que estão em campo, porém, admitem que a atuação é restrita por faltar apoio de policiais em terreno tão perigoso. Sob a guarda do governo do Estado, a polícia garante que, uma vez acionada, provê escolta, mas que a comunicação entre as partes é falha.
No vácuo deixado por esse empurra-empurra de responsabilidades, os milicianos (muitos deles saídos das fileiras da própria polícia) vão ganhando força. Há duas semanas, funcionários do município estavam na Muzema quando avistaram quatro bandidos munidos de fuzis caminhando pela mata e dando uma amostra de quem manda no pedaço. Apenas um carro da PM vigiava o lugar. Por ora, três homens que faziam transações imobiliárias na favela foram indiciados por homicídio doloso — um está preso e dois, foragidos. A polícia se empenha neste momento em fechar o elo do trio com a milícia e chegar a mais nomes.
Documentos que estão em poder do Ministério Público mostram que a prefeitura carioca tem ciência da acelerada expansão irregular na Muzema desde que os primeiros casebres surgiram por lá, em 2005, devastando um pedaço de Mata Atlântica original. Mas nenhuma providência foi tomada para impedir a ocupação. Só agora, depois das mortes de abril, a prefeitura decidiu demolir as precárias construções — um remendo puído para anos de olhos fechados diante do descaramento da bandidagem. Uma moradora, que prefere não se identificar por medo dos milicianos, diz: “Tem ainda muita obra no tijolo. Daqui a pouco começa a subir tudo de novo”. E uma das grandes tragédias cariocas é propositadamente ignorada pelas autoridades.
Publicado em VEJA de 5 de junho de 2019, edição nº 2637
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