Duelo de bisturis: a briga judicial em torno do legado de Ivo Pitanguy
Batalha põe em lados opostos do ringue herdeiros e discípulos do mestre, figura incontornável da cirurgia plástica mundial
Um dos brasileiros mais celebrados no exterior, Ivo Pitanguy cravou o feito de instalar o país no mapa da excelência na cirurgia plástica. Ao longo de décadas, seu traquejo com os bisturis atraiu para um histórico casarão no Rio de Janeiro clientela estelar de todos os cantos do planeta. Pois no ano de seu centenário de nascimento é um assunto nada glamoroso que o conduz aos holofotes: os quatro herdeiros do médico, morto em 2016 aos 93 anos, e seus discípulos travam uma renhida batalha judicial que põe em risco o que restou de seu legado — o Instituto Ivo Pitanguy, que desde 1960 oferece cirurgias, a baixo custo ou gratuitas, na enfermaria 38 da Santa Casa carioca. A escola de talentos que funciona ali despontou como uma pós-graduação de renome global, de onde profissionais de mais de quarenta países saíram formados e com o qual a metade dos 6 000 cirurgiões plásticos em atividade no Brasil mantém algum elo profissional.
O instituto, iniciativa do próprio “professor”, como Pitanguy era chamado, ganhou prestígio em paralelo à clínica que tocava no bairro de Botafogo, na Zona Sul do Rio. Nos áureos tempos, avistava-se por lá efervescente entra e sai de celebridades como a princesa Stéphanie de Mônaco, a atriz Sophia Loren e o piloto Niki Lauda. O local chegava a faturar nos áureos tempos cerca de 5 milhões de reais mensais (em valores de hoje), até que o chefe, já envelhecido, começou a se afastar, e a procura minguou. Sustentar o complexo, com quinze quartos e setenta funcionários, tornou-se então inviável — a drenagem de recursos batia àquela altura 800 000 reais por mês. E foi assim que, sem um sucessor no horizonte, a venda tornou-se inescapável. Três anos depois da morte de Pitanguy, o negócio seria selado por 10 milhões de reais.
Agora, o temor é que o serviço da enfermaria 38 desapareça. A disputa, que põe de um lado do ringue os representantes do espólio — os filhos Ivo, Gisela, Helcius e Bernardo — e de outro a diretoria do instituto, nas mãos do cirurgião Francesco Mazzarone, começou logo depois da morte do cirurgião. Por carta, os herdeiros trataram de comunicar ao núcleo na Santa Casa que não poderia mais usar o nome Pitanguy. Havia lhes chegado a informação de que Mazzarone tentara registrá-lo por duas vezes no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi). “Fiz isso com o professor ainda vivo e o seu aval, justamente para garantir nossa continuidade. O que a família faz é espalhar histórias por aí”, dispara o discípulo. “A atual direção visa dar um caráter empresarial a uma prestação de serviço social e obter vantagem financeira em benefício próprio”, rebate o advogado João Pedro Bion, do escritório Sérgio Bermudes, na defesa dos filhos.
Em meio à contenda, o caldo entornou quando Mazzarone entrou com uma ação na 8ª Vara Cível do Rio na tentativa de contornar o veto familiar. Ele pleiteia agora a troca da nomenclatura de Instituto Ivo Pitanguy para serviço de cirurgia plástica “fundado por Ivo Pitanguy”, mas os herdeiros seguem irredutíveis, alegando que a qualidade de hoje não faz jus ao brilho do passado. O fato é que, sem a grife, haverá revoada ainda mais acentuada de clientes e alunos, o que enterrará de vez o centro. Pessoas que acompanham atentamente o imbróglio contam a VEJA que a família estaria interessada na venda do valioso nome e já teria até procurado clínicas da cidade, o que seus integrantes negam com veemência.
A batalha da enfermaria 38 se desenrola na base de estocadas para todos os lados. Antes mesmo da guerra judicial se instaurar, a família já havia trocado as fechaduras de armários do instituto que ficavam alojados na clínica de Botafogo, onde os alunos compareciam duas vezes por semana. Mais tarde, quando Mazzarone alterou o estatuto para abrir espaço a um novo presidente honorário, cargo ocupado por Pitanguy até o fim, os herdeiros diziam que a mexida era para alijá-los do processo. A acidez escalou de patamar quando o instituto organizou com a prefeitura, em 2017, um jantar beneficente sem o conhecimento da inventariante Gisela Pitanguy. Foi cancelado.
Pitanguy acumulou incontáveis seguidores, mas não fez sucessor, mesmo que seu neto, o também cirurgião Antonio Paulo, ainda jovem, tenha externado o desejo de assumir o bastão. Ele foi inclusive aluno do instituto, que atualmente vive na penúria. “Requisitado mundo afora, o professor nunca deixou de se preocupar com a perpetuação do ensino e a questão social. É muito triste assistir a essa situação”, lamenta a cirurgiã Bárbara Machado, sua assistente por 26 anos. O declínio, que se agravou com o litígio, já se aprofundara com a crise financeira da Santa Casa e a perda do vínculo com o SUS. Em 2021, veio novo baque: a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica descredenciou a escola. A decisão, garante a turma que apoia Mazzarone, teria o dedo da família. “Não há profissional da área que nunca tenha sonhado em estudar lá. Era uma chancela de excelência”, afirma Eduardo Lintz, presidente da associação de ex-alunos, à frente da organização de um congresso e um jantar de gala para celebrar os 100 anos do mestre, em julho. O enrosco judicial sem tréguas retira da festa um naco do glamour.
Publicado em VEJA de 10 de maio de 2023, edição nº 2840