Metalúrgico e líder sindicalista, Lula foi catapultado à política liderando greves históricas que desafiaram a ditadura militar no ABC paulista nos anos 1970. O agora presidente da República teve uma longa trajetória no movimento e foi decisivo para a criação da maior organização sindical do país, a Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983. Como líder da bancada petista durante a Assembleia Constituinte, votou a favor do direito à greve e de outras questões trabalhistas, como o aviso prévio proporcional, o salário mínimo real e a estabilidade do dirigente sindical. Agora, em um momento delicado do seu terceiro mandato, com a popularidade em queda e várias crises internas no seu governo, Lula é alvo de uma pressão adicional vinda de velhos conhecidos: os sindicatos.
Um amplo movimento reivindicatório tem crescido e colocado o governo contra a parede nas últimas semanas. Pelo menos vinte categorias estão mobilizadas por reajuste salarial, reestruturação de carreiras e melhores condições de trabalho, segundo estimativa do Fonacate (Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas do Estado). Na última semana, a cobrança aumentou com a greve dos professores e técnicos dos institutos de ensino, que já afeta pelo menos 300 campi. Docentes das universidades federais também ameaçam cruzar os braços a partir do dia 15. A paralisação ainda atinge o meio ambiente, área que é vendida pelo Palácio do Planalto como uma de suas prioridades. Servidores do Ibama e do ICMBio suspenderam as ações de fiscalização e se concentram em atividades burocráticas há três meses — nesse período, o número de multas ambientais na Amazônia caiu 81,65%, segundo a Ascema (Associação Nacional dos Servidores de Carreira de Especialista em Meio Ambiente). Em outros setores, há paralisações pontuais e operação-padrão (rotina com mais lentidão e burocracia) no Banco Central, na Receita Federal, na Comissão de Valores Mobiliários e no Ministério da Agricultura.
O alerta já vinha sendo dado há algum tempo. Ciente da insatisfação dos servidores, o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos instalou uma mesa de negociação permanente já em fevereiro de 2023, mas enfrenta o desafio de arrumar espaço no orçamento sem prejudicar as políticas sociais. A pasta depende da avaliação do regime fiscal de 2024 para conceder o reajuste aos servidores. “Há uma discussão interna sobre impacto orçamentário, e por isso não é no prazo que os servidores gostariam. Mas não estamos parados. Todas as mesas de negociação estão caminhando”, afirma a ministra Esther Dweck.
Apesar da disposição do governo, ainda reconhecido como aliado pelo movimento sindical, a margem para negociar é pequena. A gestão propõe aumentar benefícios (auxílios alimentação, creche e saúde) em maio, mas a recomposição salarial seria negociada carreira a carreira, sem a garantia de reajuste neste ano. Essa indefinição incomoda os sindicatos, que intensificaram a pressão nos últimos dias. Na semana passada, Dweck se reuniu com os ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Marina Silva (Meio Ambiente) para tratar do tema. “A gente sabe que o governo tem suas prioridades. Esperamos que o serviço público federal esteja entre elas”, diz o presidente do Fonacate, Rudinei Marques.
A queda de braço vem em um momento delicado para o governo, não só pela popularidade em queda de Lula. A gestão também vem tentando manter longe do plenário no Congresso uma proposta de reforma administrativa que tramita desde 2020 e que é defendida pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Entre outros pontos, a medida restringe a estabilidade, amplia possibilidades de terceirização e cria ferramentas para monitorar o desempenho. O Palácio do Planalto tenta adiar a todo custo o debate necessário sobre o tema, sendo que as questões ideológicas estão entre os principais motivos (o PT nasceu no berço do sindicalismo e Lula não mostra disposição alguma de abandonar a equivocada fé no progresso econômico pelo Estado forte).
A bem da verdade, mesmo governos com discursos mais liberais fraquejam na hora de mexer nesses interesses, pois enxergam os funcionários públicos como uma massa nada desprezível de eleitores. Atualmente, o Brasil tem 570 000 servidores ativos — metade deles está em mobilização contra o governo (em greve ou em campanha salarial) — e o país gasta com eles 370 bilhões de reais ao ano. Segundo o FMI, o salário pago no setor público equivale a 8,9% do PIB e está na média global. Para Cibele Franzese, coordenadora da graduação em administração pública da FGV, o problema é outro: “Há muita desigualdade. Uns ganham muito e outros, pouco”. Segundo ela, sem negociação unificada, quem fizer mais pressão política vai levar. O que Lula talvez não estivesse esperando era ter de enfrentar o fogo amigo de velhos companheiros de jornada.
Publicado em VEJA de 12 de abril de 2024, edição nº 2888