Nos últimos anos, pelo menos de 2013 até os dias atuais, o Brasil tem vivido uma intensa polarização na política, fenômeno que provocou retrocessos na condução do país e ataques covardes à nossa democracia. Todas as vezes em que o fanatismo prospera, a razão perde — e as consequências são terríveis. Infelizmente essa divisão não se restringe apenas às redes sociais e grupinhos de WhatsApp. Ela acabou permeando diversos órgãos de Estado, levando a irracionalidade na condução da coisa pública ao paroxismo. Em vez da defesa de princípios e valores, cargos poderosos da República atuaram a favor de pessoas e partidos. Na última década, a Procuradoria-Geral da República também entrou nesse indesejável Fla-Flu, alternando momentos de ativismo e inação — de acordo com os interesses de quem a PGR procurava apoiar ou atacar. Tal comportamento, evidentemente, chamuscou a imagem da instituição e a distanciou do seu propósito fundamental: atuar com ponderação e equilíbrio na proteção do estado democrático de direito (e não de alas radicais de um lado ou outro do espectro político).
A boa notícia é que o presidente Lula tem agora a oportunidade de romper esse ciclo vicioso. Na terça-feira 26, terminou o mandato de Augusto Aras, o procurador-geral escolhido por Jair Bolsonaro. Ele divulgou um balanço sobre sua gestão. Em quatro anos, a PGR realizou 37 acordos de colaboração premiada, o que resultou na recuperação de 1 bilhão de reais aos cofres públicos. O relatório, recheado de números, mostra que foram apresentadas 1 480 denúncias contra pessoas que cometeram algum tipo de crime — ressalte-se que, desse total, 1 409 são acusações contra os manifestantes que participaram dos ataques do dia 8 de janeiro. “Meu mandato foi cercado de incompreensões e falsas narrativas”, disse o procurador-geral na última sessão da qual participou no Supremo Tribunal Federal. E concluiu: “Ao MP, tal qual o Judiciário, a Constituição veda expressamente a atividade política partidária. Nossa missão não é caminhar pela direita ou pela esquerda, mas garantir, dentro da ordem jurídica, que se realize justiça, liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana”.
A gestão de Augusto Aras teve virtudes que devem ser reconhecidas e elogiadas, mas ela também será lembrada por não ter atuado em alguns casos com a efetividade que se espera do Ministério Público. O procurador é acusado de omissão durante a pandemia diante do desdém do governo Bolsonaro em relação às vacinas. Para alguns observadores, os ataques de 8 de janeiro também poderiam ter sido evitados se tivesse ocorrido uma ação mais enérgica da PGR contra as pregações golpistas que antecederam a manifestação. O procurador ainda deixou em segundo plano a apuração de denúncias graves, como a que envolveu o ex-presidente do Congresso, senador Davi Alcolumbre, com a prática de rachadinha. Essa aparente inapetência em relação às investigações contra políticos, aliás, pode ser atribuída a um efeito colateral de um remédio para outro problema.
Antes de tomar posse no cargo, Aras deixou claro que uma de suas tarefas seria exatamente o de descontinuar aquilo que foi definido em certos setores como um “processo de criminalização da política” — um estigma herdado por causa dos métodos dos procuradores que conduziram a Lava-Jato. Aras foi alçado ao cargo como um antagonista a Rodrigo Janot, o procurador-geral que esteve à frente das investigações que descobriram esquemas importantes de corrupção, mas que, com seus exageros e atropelos, bagunçou os cenários jurídico e político do país. Ao contrário de Aras, Janot foi escolhido com base em uma lista tríplice elaborada pelos próprios procuradores. Por ser um antigo militante de esquerda, a então presidente Dilma Rousseff acreditava que ele blindaria o governo dela (não o de Lula) contra eventuais investidas de opositores. A Lava-Jato implodiu a redoma. Em Curitiba, puxou-se o fio da meada do esquema de corrupção que envolvia quase todo o PT e um naco enorme de políticos de outros partidos. Cabia ao procurador-geral, portanto, dar sequência aos processos. Movido pela popularidade que o caso alcançou, Janot disparou suas “flechas”, como ele dizia, em todas direções, às vezes sem as provas necessárias, em certos casos movido apenas pela bússola política. O resultado, como se sabe, foi desastroso.
Até o fechamento desta edição, Lula não havia anunciado o nome do indicado para o cargo considerado o terceiro posto mais importante da República, abaixo apenas da própria Presidência e das Presidências da Câmara e do Senado. Tomara que seja alguém que possa encontrar esse ponto de equilíbrio. Entre as diversas atribuições de um PGR (tocar investigações contra autoridades com foro privilegiado, questionar a constitucionalidade de leis e proteger o direito de minorias), uma em especial causa calafrios a qualquer ocupante do Palácio do Planalto: a prerrogativa de ser denunciado por crimes comuns, estopim para a hipótese de afastamento do cargo. “O procurador-geral é como se fosse um papa. Tem poderes maiores do que os de um ministro do STF”, afirmava Augusto Aras, tal como um mantra, a diferentes interlocutores na PGR. Ao longo de quatro anos, ele arquivou pelo menos setenta pedidos de inquérito que miravam Bolsonaro.
De fato, o procurador-geral pode ser a solução e o problema. No escândalo do mensalão, por exemplo, o então PGR Antonio Fernando de Souza denunciou quarenta políticos e empresários envolvidos, mas, apesar das pressões, poupou o então presidente Lula de responsabilidade no esquema de suborno de parlamentares para a formação da própria base aliada. Rodrigo Janot, durante a Lava-Jato, denunciou o ex-presidente Fernando Collor, pediu a prisão do ex-presidente José Sarney, acusou o ex-presidente Michel Temer de corrupção e investigou a própria Dilma Rousseff — processos que, em sua maioria, acabaram arquivados ou anulados na Justiça. Já o futuro procurador-geral provavelmente terá em suas mãos o processo que pode levar Jair Bolsonaro à prisão e encerrar de vez a carreira política do ex-presidente, caso as investigações em curso concluam que ele comandou ou teve participação nos ataques de 8 de janeiro. “O procurador-geral ideal é alguém que se recuse a ser um ator político, apesar de toda a pressão para isso no sistema político brasileiro. Seria melhor o Congresso escolher o PGR, com muita atenção da mídia e da sociedade civil. Por isso, deixar essa indicação somente para o presidente, qualquer que seja ele ou ela, é algo temerário”, diz o cientista político da FGV Sérgio Praça.
Aliados dizem que o presidente busca um nome que possa representar um meio-termo entre o ativismo e a inação — e, claro, que não crie deliberadamente qualquer tipo de dificuldade ao governo. Nas poucas vezes em que falou sobre o assunto, a única pista que Lula deu sobre a escolha foi que, desta vez, não se orientaria pela lista tríplice do Ministério Público, como havia feito nos dois mandatos anteriores. “Era uma das instituições que eu idolatrava. Depois dessa quadrilha que o Dallagnol (Deltan Dallagnol, ex-chefe da força-tarefa da Lava-Jato) montou, eu perdi muita confiança. Eu perdi porque é um bando de aloprados, que achavam que poderiam tomar o poder, estavam atacando todo mundo ao mesmo tempo, atacando o governo, o Poder Executivo, o Legislativo, a Suprema Corte”, disse ele, que chegou a ser condenado e preso na Operação Lava-Jato. E sobre a expectativa em relação ao futuro PGR? “Eu não quero escolher alguém que seja amigo do Lula. Eu quero escolher alguém que seja amigo desse país, alguém que não faça denúncia falsa, alguém que não levante falso sobre o outro”, acrescentou. E quais seriam as virtudes necessárias para o candidato? “Um cidadão que seja decente, digno, de muito caráter e que seja respeitado pelos bons serviços prestados ao país”, resumiu. Que assim seja.
Colaborou Hugo Marques
Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2023, edição nº 2861