“Essa dor não me deixa”, diz mãe de jovem morto no Ninho do Urubu
Marilia Barros, 50 anos, fala de luto e revolta um ano depois da tragédia
Todos os dias me esforço para tornar tolerável essa dor que a morte do Arthur me trouxe, e nada a faz passar. Ainda trabalho, cumpro meus deveres, mas a ausência dele me arrancou a alegria. Meu marido morreu quando ele ainda era pequeno, então éramos só nós dois. Ficava a semana inteira à espera da ligação do Arthur na quinta-feira, para decidir se ele viria do Ninho do Urubu, no Rio de Janeiro, para Volta Redonda, onde morávamos, ou se era a minha vez de visitá-lo na capital. O fim de semana voava, mas sempre dava para matar a saudade. Era um privilégio. Muitas das mães dos meninos que ficavam no Ninho passavam meses e meses sem ver os filhos, porque viviam longe. A última vez que falei com o Arthur foi de novo em uma quinta-feira, véspera da tragédia que mataria outros nove garotos naquele fatídico incêndio. Seria aniversário dele no sábado, dois dias depois. No lugar de fazer festa e apagar as velinhas do bolo de 15 anos, enterrei meu filho.
A gente vai se adaptando, tentando contornar o luto. Eu me pego assistindo cada vez menos aos vídeos do Arthur, prefiro as fotos. Ver ele se mexendo, brincando, rindo aumenta a minha dor diante da ideia de não poder fazer mais nada disso. Fico com saudade até do que o Arthur poderia ter sido. Como seria a barba dele? Estaria mais alto? Ele me apresentaria uma namorada, me daria um neto? Isso não é mais um buraco: é uma cratera. Rezo muito, peço por ele. Acredito que Arthur não gostaria de ver a mãe triste de forma alguma, e é por ele que eu tento continuar encontrando meus amigos, minha família, indo à igreja, seguindo em frente. Chego aos lugares, vejo pais com filhos e me pergunto: cadê o meu? Sinto falta até da bagunça, da reclamação, de dar bronca no Arthur para não gastar dinheiro demais com bobagens por aí. Quando a gente perde os pais — e eu já perdi os meus — vira órfão. Quando perde um filho, vira o quê? Não há resposta no Google, no dicionário. Não existe nome para isso, não é natural. A última vez que vi o Arthur foi no derradeiro domingo de férias. Como eu ia saber que, nestas férias de agora, no lugar dele haveria o vazio?
Aumenta minha angústia o silêncio por parte do Flamengo. O clube fez contato comigo no dia da tragédia, 8 de fevereiro. Um funcionário e um psicólogo me ligaram. No velório, uma outra pessoa veio falar comigo. Depois, só tivemos um encontro no Ministério Público. Foi desesperador. Um monte de gente discutindo sobre dinheiro em cima da vida de crianças que tinham acabado de morrer. Nós, pais, fomos humilhados em nosso maior momento de dor. O MP pede 1 milhão de reais para as famílias mais uma pensão de 10 000 reais por mês. E o Flamengo quer botar esse valor muito mais para baixo. Não conheço os detalhes dos casos em que o clube entrou em acordo com as famílias, mas sei que as quantias ficaram muito aquém do que é digno.
A última notícia que tive do Flamengo foi em maio passado, há nove meses. Recebi um telefonema de lá em que pediam o número do meu advogado, mas nunca ligaram para ele. Eu confiei que meu filho ficaria seguro onde estava. Acabei perdendo-o. Para o Flamengo, imagino que a história seja página virada, uma daquelas que é melhor apagar. Cutuco a ferida justamente para que o assunto não seja esquecido. Como os dirigentes colocam a cabeça no travesseiro e conseguem dormir, eu realmente não sei. O descaso é uma falta de respeito. Hoje em dia não assisto mais a nenhum jogo, não dá. Meu filho poderia ser um desses craques que estão brilhando no campo. Eu nunca vou saber. Será que essas pessoas que não nos respondem também têm filhos? Tenho a impressão de que nunca fizeram o exercício de se colocar no nosso lugar. Infelizmente, o lugar onde me encontro neste exato momento é o pior de todos.
Depoimento dado a Bruna Motta
Publicado em VEJA de 12 de fevereiro de 2020, edição nº 2673