Em nenhum lugar do mundo se observa uma revolução da fé tão intensa quanto a promovida pelas igrejas evangélicas no Brasil. Diferentemente do que aconteceu na Europa, onde os países de maioria protestante levaram séculos e algumas guerras sangrentas para pôr o catolicismo em segundo plano, em apenas seis décadas a quantidade de brasileiros que se identificam com essa corrente do cristianismo passou de 3,6% da população, em 1950, para 22,2%, em 2010, ano mais recente dos dados oficiais do Censo que estão disponíveis. Atualmente, estima-se que essa fatia chegue a um terço da população e, segundo cálculo do demógrafo José Eustáquio Alves, em apenas oito anos os evangélicos serão maioria no país (veja o quadro). “O segmento é muito coeso, tem uma estrutura interna hierarquizada e passou a representar uma parcela enorme do eleitorado. Nenhum outro grupo apresenta esse perfil”, diz Felipe Nunes, cientista político da Quaest Consultoria e Pesquisa. Celebrado em cultos lotados, o avanço representa uma tremenda dor de cabeça para o Palácio do Planalto — as grandes denominações cerraram fileiras em torno do bolsonarismo e, por mais acenos que faça, o presidente Lula, passado um ano da posse, segue sendo um filisteu no universo dos crentes.
No contexto mais amplo, trata-se de um relacionamento fadado a controvérsias, com um rosário de queixas de parte a parte. Ao mesmo tempo que reconhece a relevância de abrir espaço em um grupo tão estratégico, Lula hesita em ceder a todas as pressões das principais lideranças religiosas que compõem a influente Frente Parlamentar Evangélica, a chamada bancada da Bíblia no Congresso. A interlocutores, o presidente tem dito que não acredita que elas simplesmente deixarão de fazer os ataques que vêm lançando nos púlpitos e redes sociais desde a campanha eleitoral de 2022. “Os pastores que mentiram a meu respeito sabem que não estão falando em nome de uma religião séria ou em nome de Deus”, disparou durante cerimônia da reinauguração da Refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. Do lado de lá, o pecado mais comentado no momento é a revogação pelo governo de um benefício tributário, concedido por Jair Bolsonaro, que isenta de contribuições previdenciárias os pastores cuja renda depende exclusivamente de doações de fiéis, as chamadas prebendas. A medida causou revolta nos integrantes da bancada da FPE. “O PT usa sempre a mesma prática de criar dificuldades e, assim, forçar uma negociação, mas, o que eles escrevem com a mão, apagam com o cotovelo”, diz o deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), vice-presidente da Frente.
Na costumeira ação de morde e assopra que pauta a relação, depois do anúncio da medida o ministro Fernando Haddad fez questão de telefonar para deputados da FPE e se reuniu com parlamentares ligados às igrejas Universal do Reino de Deus (Iurd), Internacional da Graça de Deus e ao Ministério de Madureira da Assembleia de Deus. Ouviu apelos pela volta do benefício, mas evitou se comprometer. O impasse levou à escalação de Jorge Messias, advogado-geral da União e evangélico do tipo moderado, para mediar a contenda. Aproveitando a deixa, Messias tentará abrir um caminho das pedras no oceano que separa o governo dos fiéis. “É preciso reconstruir as pontes com as diferentes denominações evangélicas com as quais o governo já manteve relações”, disse ele a VEJA. Um dos partidos mais abertos ao diálogo é o Republicanos, ligado à Universal, que apoiou Lula em seu longínquo primeiro mandato, afastou-se dele na campanha de 2018 (o bispo Edir Macedo chegou a dizer na ocasião que o diabo tinha nove dedos) e, recentemente, pediu desculpas pelas agressões. “Não dá para ser oposição a nenhum governo”, admite um alto quadro da Iurd.
Outro ponto de tensão tratado como prioritário no Planalto é uma Proposta de Emenda à Constituição que tramita à sua revelia no Congresso e regulamenta a isenção de impostos para todas as entidades religiosas presentes no Brasil e também às organizações assistenciais e beneficentes vinculadas aos templos. O governo dificilmente conseguirá impedir que a matéria, que já passou pela Comissão de Constituição e Justiça, seja apreciada até a Páscoa, mas trabalha para restringir sua aplicação. Serviços sociais sob CNPJ das igrejas e até reformas de seus imóveis seriam contemplados, mas a compra de bens como carros e aviões ficariam de fora. “Já há algum consenso nesse sentido. Estamos discutindo uma maneira de definir como a isenção será aplicada”, revela André Ceciliano, assessor da Presidência que admite a possibilidade de um sistema de devolução de impostos, no modelo cashback.
O toma lá dá cá que se desenrola até agora em Brasília dificilmente conseguirá furar a bolha evangélica que segue rejeitando o governo sistematicamente. Pesquisa Genial/Quaest mostra que a desaprovação do governo Lula entre a população em geral é de 43%, mas bate em 56% na fatia evangélica. O grupo nem é mais tão bolsonarista — em 2018, 70% votaram em Jair Bolsonaro, ante 56% em 2022. Segue, porém, furiosamente antipetista. Não raro, tentar quebrar a resistência passa pelos gabinetes do Ministério do Desenvolvimento Social. O titular da pasta, Wellington Dias, tem sugerido a lideranças de igrejas independentes que sirvam de porta de entrada para a inscrição em benefícios como Bolsa Família e Minha Casa Minha Vida, duas plataformas eleitorais das mais potentes — o primeiro convênio, com 27 denominações, foi assinado no fim do ano passado. Embora não participem tão ativamente da política nacional, as igrejas independentes são as que mais crescem e representam quase um terço do total de templos no país.
Nos governos anteriores do PT, que contavam com a simpatia evangélica, a ampliação de direitos e o crescimento econômico, fatores que afetam diretamente a vida da população das classes C, D e E, nas quais a concentração do segmento é bem maior, funcionaram como uma espécie de vacina contra a resistência ideológica. No quadro atual, contudo, a fórmula não surte o mesmo efeito. “Mesmo que o governo atue bem na área econômica, os aspectos morais e religiosos tendem agora a prevalecer entre os evangélicos”, afirma Victor Araújo, professor da Universidade de Reading, no Reino Unido, e autor do livro A Religião Distrai os Pobres?. Por causa disso, o crescimento de 3% do PIB e a diminuição do desemprego no primeiro ano de gestão Lula tiveram pouco impacto na maneira como os evangélicos veem a administração petista.
O Planalto atribui esse fato ao filtro ideológico que domina as redes virtuais evangélicas, principal fonte de informação do segmento. A segunda rodada de uma pesquisa qualitativa com 45 mulheres pertencentes às principais igrejas, realizada pelo Instituto de Estudos da Religião no fim do ano passado, identificou que até medidas do governo sem nenhuma conotação religiosa ganham ares de guerra santa nos grupos de mensagens. “Uma resolução do Ministério da Saúde que permite tratamentos alternativos no SUS passou a ser disseminada como mais um episódio de perseguição aos evangélicos, por supostamente beneficiar religiões de matriz africana, o que não é verdade”, diz Lívia Reis, coordenadora do estudo, referindo-se à queixa comum entre pastores de que os cristãos, embora majoritários, são alvo de intolerância religiosa.
Também permanece firme nas redes, após anos de desmentidos, o rumor de que o governo quer implantar banheiros unissex nas escolas e distribuir o infame “kit gay”, uma cartilha inexistente para ensinar relações homossexuais a crianças e adolescentes. Em campanha, Lula chegou a divulgar uma Carta aos Evangélicos, lida em encontro dele com 150 pastores, em que tratava dessas notícias falsas, se dizia pessoalmente contra o aborto e defendia a liberdade religiosa. A disseminação incontrolável de fake news levou a Fundação Perseu Abramo, braço acadêmico do PT, a criar um grupo de trabalho para melhorar a comunicação com os fiéis e encomendar uma pesquisa envolvendo 27 diretórios estaduais para desenvolver estratégias de combate à desinformação.
Ao inferno das fake news somam-se os gestos e falas da esquerda petista que soam como heresia aos ouvidos evangélicos. Um tema que despertou a ira do segmento recentemente, depois da eclosão da guerra no Oriente Médio, foi o apoio de setores do PT à causa palestina — quase todas as correntes evangélicas apoiam o Estado de Israel, que consideram “defensor da Terra Santa”. A indignação aumentou ainda mais quando o ex-presidente do partido José Genoino defendeu um boicote às empresas pertencentes a judeus que assinaram um manifesto contra o governo. Previsivelmente, os fiéis conservadores abominam bandeiras progressistas, como a manutenção da união civil homoafetiva e a descriminalização das drogas e do aborto. “Em busca de uma aproximação, a única atitude que o governo pode ter é não pautar esses temas. Mas isso não é simples, porque a esquerda estaria deixando de ser ela mesma do ponto de vista dos valores”, afirma Nunes. No papel de intermediador, Messias contemporiza: “O governo pode até não atender a todos os pleitos dos religiosos, mas precisa compreender seus anseios e considerar sua forma de ver o mundo e a sociedade”.
Para complicar ainda mais o cenário já embolado, o pequeno grupo de pastores progressistas que apoiou Lula na eleição de 2022 se sente incomodado com o esforço do governo para agradar a banda bolsonarista e enviou uma carta à presidente do PT, Gleisi Hoffmann, manifestando sua contrariedade. “Não faz sentido dialogar com lideranças evangélicas que ainda fazem a popularidade do presidente sangrar, enquanto se esquece dos que sangraram para o eleger”, diz o pastor batista Sergio Dusilek, perseguido na campanha por declarar apoio ao petista. Convocado para apagar o incêndio, o secretário de Economia Popular e Solidária Gilberto Carvalho, petista de raiz e católico praticante, marcou para 2 de fevereiro um “Encontro com Gilberto Carvalho & Religiosos” no Rio de Janeiro. Entre a cruz e a caldeirinha, Lula até agora evitou grandes gestos. Mas, com as eleições municipais se aproximando e de olho em 2026, ou ele cede aos anseios do rebanho evangélico, ou corre o risco de permanecer pregando no deserto.
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2024, edição nº 2877