Historicamente, as igrejas cristãs são conduzidas por movimentos e doutrinas, que diferem entre si e se baseiam em interpretações bíblicas. Algumas são demasiadamente delicadas: em vez de ajudarem as pessoas, elas podem ferir. É muito difundida hoje nos Estados Unidos, por exemplo, a teologia da prosperidade, um movimento segundo o qual, se você amar a Deus e fizer por merecer, Ele dará tudo o que você pedir. Para mim, isso é uma leitura errônea da Bíblia — que afirma, em Lucas 12:48: “A quem muito é dado, muito será cobrado”. Diversos outros trechos do livro sagrado ressaltam a necessidade de o cristão trabalhar em favor dos imigrantes, pobres, órfãos e viúvas, em vez de acumular bens para si.
Nesse mesmo caminho, existe uma cobrança exagerada, em variadas igrejas, para que seus membros sejam perfeitos, exalando prosperidade e, de preferência, uma perfeita saúde mental — que estaria diretamente atrelada a uma adequada vida espiritual. Por muitos anos acreditei nisso e tentei ser perfeita para ter o amor de Deus. Até o dia em que me vi internada em um hospital psiquiátrico.
Cresci em uma família cristã na Escócia, onde nasci. Meio sem querer, eu me envolvi com a música e acabei me tornando uma cantora de certo prestígio na Inglaterra e nos Estados Unidos. Durante cinco anos, entre 1987 e 1992, fui apresentadora de um programa matinal diário chamado The 700 Club, produzido pela Christian Broadcasting Network (CBN). Na época, enquanto eu fingia ter a tal vida cristã invejável, escondia sintomas de depressão. Não dormia, não comia. Eu me sentia contínua e profundamente triste. Minha memória começou a esvair-se, mal lembrava a senha do banco. Até que um dia, durante o programa, dei início a uma entrevista e meu convidado me questionou: “Sheila, você sempre pergunta como estamos, mas e você? Como você está?”. Eu congelei. Não consegui responder. Senti tontura. Após longos segundos de absoluto silêncio no ar, ao vivo, chamaram os comerciais. Corri para meu camarim. Tranquei-me e comecei a tremer e a chorar compulsivamente. Liguei para um amigo que é psiquiatra e pedi ajuda. Foi quando me internei numa clínica para pessoas com distúrbios mentais. Fui diagnosticada com depressão severa e transtorno de stress pós-traumático, motivados pelo suicídio do meu pai, que morreu aos 34 anos, a mesma idade em que tive o ataque na televisão.
Meu pai sofreu uma forte hemorragia cerebral que alterou a vida da minha família. Na época, eu tinha 5 anos. Sua personalidade mudou, e eram comuns os episódios de raiva. Eu, que era muito próxima dele, me tornei alvo de pequenas violências. Um dia eu estava brincando no chão da sala e ele tentou me acertar com a bengala. Não lembro como me livrei, mas ele caiu no chão. Minha mãe chamou a polícia, e meu pai foi internado em um hospital psiquiátrico — na época, na Escócia, o nome dado a instituições do tipo era asilo para lunáticos. Pouco tempo depois, ele conseguiu escapar durante a noite e foi encontrado na manhã seguinte, afogado num riacho ao fundo do hospital, onde tirou a própria vida.
Corria a década de 60, e os estigmas dos distúrbios mentais e do suicídio eram ainda maiores do que hoje. Os membros da nossa igreja se afastaram da minha família. Tivemos de nos mudar de cidade. Falar sobre a morte do meu pai era um grande tabu na minha casa, então nos calamos. Interiorizei meus sentimentos e fingi o máximo possível para mostrar que estava sempre bem. Tudo isso culminou na minha internação.
Fiquei no hospital por um mês. Na primeira noite, achei que iria morrer. Na minha mente, meu pai não sobreviveu à mesma experiência. Fui medicada e comecei a fazer psicoterapia individual e em grupo. Como era uma unidade hospitalar de cunho cristão, conheci outras pessoas com a fé e a psique abaladas. Em determinado ponto do tratamento, percebi que eu não era perfeita, e que meu relacionamento com Deus não exigia que eu o fosse.
“Há quem diga: ‘Se você tiver mais fé, se acreditar mais em Deus, a depressão irá embora’. Isso é ridículo”
Depois desse episódio, quando voltei à ativa, muitas pessoas me disseram: “Você não pode contar sobre isso a ninguém, pois nunca mais vão confiar em você para falar em igrejas ou em um programa na TV para cristãos”. Mas lembrei que manter em segredo o que tinha acontecido na minha família foi o que me levou ao limite das minhas emoções e agravou minha doença. Optei pela verdade.
Atualmente, existe uma vertente de cristãos que entende a importância do tratamento clínico da saúde mental. Mas há quem diga: “Se você tiver mais fé, se acreditar mais em Deus, a depressão irá embora”. Isso é ridículo. É o mesmo que dizer para alguém que quebrou a perna: “Tenha mais fé, levante-se e ande”. Acredito que todos os mecanismos que temos para tratar transtornos mentais são bênçãos de Deus. Agradeço a Deus, todos os dias, por meus antidepressivos. Não espero ser curada, pois entendo a depressão como uma doença de tratamento contínuo. Já tive vergonha disso, mas não tenho mais. Comecei a falar abertamente sobre depressão nas igrejas por onde passo, e encontro muitas pessoas, especialmente mulheres, que me dizem que sofrem de sintomas parecidos, ou que, envergonhadas, tomam remédios controlados.
Líderes religiosos pegam trechos bíblicos fora de contexto e afirmam coisas como: “Você não deve tomar remédios, pois Deus é quem dá forças, afinal, ‘tudo posso naquele que me fortalece’” — famoso versículo que consta em Filipenses 4:13. Ao longo das minhas viagens, já passei por igrejas do Brasil, da Austrália, da África, e sinto que os dilemas são parecidos ao redor do mundo: somos muito duros conosco. Especialmente as mulheres, tão cobradas no ambiente religioso, como se pudessem ser a própria Mulher-Maravilha, do tipo que faz tudo: cuida da casa, da família, do trabalho, da igreja, da beleza. Mas é impossível.
Espero que cheguem ao fim a vergonha e o estigma de quem sofre com a saúde mental. Por esse motivo passei a escrever livros sobre o tema, como Tudo Bem Não Estar Bem (Thomas Nelson). É a frase que tem me guiado: nem sempre estamos bem, e tudo bem. Se você luta com transtornos mentais, saiba que não está sozinho, e que não é um cristão inferior. Não é um problema com sua espiritualidade. É a química do seu cérebro, e existe ajuda para isso.
* Sheila Walsh, 63 anos, cantora e autora cristã, é publicada no Brasil pela editora Thomas Nelson
Publicado em VEJA de 24 de julho de 2019, edição nº 2644