O momento mais importante da minha vida foi quando, depois de dezenove anos e seis meses de luta por justiça, o meu processo foi finalizado com a prisão de meu agressor. A violência dele me deixou paraplégica, mudando a minha história para sempre. Se há algo a tirar disso, é o fato de a minha experiência ter mudado a vida de outras mulheres no Brasil. Por muito tempo, me senti injustiçada, vítima de um sistema judiciário machista, que havia engavetado o processo por quase duas décadas. Durante esse período, o meu agressor foi julgado e condenado duas vezes, mas saiu em liberdade após vários recursos. Acho que o meu caso fez a Justiça enxergar a mulher brasileira de outra maneira.
Desde a criação da Lei Maria da Penha, há quinze anos, a luta pelos direitos da mulher avançou muito no Brasil. Mas é preciso lembrar que a lei só funciona se houver políticas públicas para aplicá-la. Na maioria dos grandes municípios, isso foi feito. Sobretudo nas metrópoles e nas capitais, iniciativas de proteção foram criadas, mulheres se informaram sobre os seus direitos e agora conseguem sair de situações de agressão e submissão. No entanto, é preciso dizer que mais políticas públicas são necessárias, como a construção de centros de referência da mulher, novas delegacias especializadas, mais casas para abrigo e melhoria dos juizados, onde os casos são finalizados.
Dito isto, é inegável que o Brasil tem uma cultura machista enraizada na sociedade. Temos visto com muita preocupação o posicionamento sexista de juízes e advogados em relação a vítimas, principalmente no sentido de não dar a devida importância aos casos de pessoas que finalmente conseguem denunciar seus agressores. Precisamos eliminar essa cultura que, tragicamente, persiste no país. Para mudar esse cenário, além do cumprimento da lei, a educação é imprescindível. Só se desconstroem velhos preconceitos ensinando as pessoas a denunciar a agressão contra a mulher, a combater o machismo, a abominar o racismo ou qualquer outra forma de discriminação. Precisamos parar de oprimir o ser humano.
Uma criança que vê violência dentro de casa acaba reproduzindo esse comportamento. Ela passa a enxergá-lo como normal, como se aquilo fizesse parte da vida. Não faz. Não deveria jamais fazer. A criança precisa de esclarecimentos, a sociedade deveria mostrar para ela que a intolerância é inaceitável. A repetição da conduta de aceitação do agressor, aliada ao fato de meninas serem encorajadas a cuidar da casa e do marido, perpetua a violência para as futuras gerações. É preciso que as crianças vejam seus pais sendo responsabilizados por seus erros. É preciso quebrar o ciclo da violência.
A demanda de casos que se enquadram na Lei Maria da Penha cresceu muito durante a pandemia. Conviver com o agressor, ficar o tempo todo em casa com ele, é difícil demais. Lembro que os melhores dias para estar com as minhas filhas eram durante a semana, quando o meu agressor estava fora, trabalhando. Os fins de semana eram cheios de tensão, porque de repente ele explodia. Eu vivia um verdadeiro horror.
É enorme a importância da Lei Maria da Penha. O envolvimento das mulheres para combater a violência e os esforços para fazer com que o número de denúncias e a conscientização crescessem fizeram, fazem e farão muita diferença na sociedade. Infelizmente, muitas mulheres ainda são vítimas de feminicídio. De acordo com uma pesquisa do Instituto Maria da Penha, que criei três anos após a sanção da lei, para cada mulher assassinada temos, em média, duas crianças na orfandade. Isso é muito grave. A lei funciona e salvou muitas vidas, mas é preciso fazer mais.
Maria da Penha em depoimento dado a Sabrina Brito
Publicado em VEJA de 12 de maio de 2021, edição nº 2737