Como se não bastasse a trabalheira imposta às mulheres na tripla jornada de trabalhar em home office, cuidar das tarefas domésticas e dar conta das crianças, a pandemia, sempre ela, vem contribuindo para aumentar os casos de um distúrbio insidioso, perturbador e, na maioria dos casos, escondido de todo mundo: a sensação de incompetência, de ser incapaz de fazer qualquer coisa direito — uma fenda na autoestima exacerbada pelo isolamento, que distancia a pessoa do mundo real e objetivo e a submerge mais ainda no ambiente filtrado e sem defeitos da internet.
Batizado de síndrome do impostor (embora não seja uma patologia), o conjunto de sintomas psicológicos associados ao sentimento de incapacidade, sobretudo nos ambientes acadêmico e profissional, é diagnosticado há décadas. No último ano, porém, ficou evidente que o comportamento, uma espécie de autossabotagem, afeta mais as mulheres do que os homens. “Sinto-me insuficiente como mãe e, principalmente, como profissional. As redes sociais agravaram o quadro, porque ficava me comparando com a vida perfeita que os outros parecem ter”, diz a paulista Camila Fremder, de 39 anos, que apresenta dois podcasts de sucesso, mas nunca escuta o próprio trabalho porque acha que não são bons o bastante.
Por terem entrado mais tarde no mercado de trabalho e lidarem até hoje com notórias desigualdades de tratamento, muitas mulheres encaram com preocupação e evidente insegurança os avanços na carreira. “Mesmo hoje, elas ainda são vistas como o sexo frágil, a quem cabe ser mãe e cuidar da casa porque são incapazes de cumprir obrigações profissionais”, observa a psicanalista Edoarda Paron. “Isso obviamente gera uma autopercepção bastante negativa.” O sentimento de não ser capacitada e estar enganando todo mundo espalha-se por diferentes profissões e classes sociais. Ele não impede que a mulher se desenvolva, é verdade, mas envolve o processo em doses exageradas de sofrimento e dúvidas.
A síndrome atinge, sim, muitas mulheres de prestígio reconhecido mundialmente: a ex-primeira dama americana e superinfluenciadora Michelle Obama, bem como as atrizes Emma Watson, Jodie Foster, Meryl Streep e Kate Winslet estão entre as que declararam sofrer esse tipo de insegurança. “Fico pensando: por que alguém vai querer me ver de novo em um filme? Além disso, não sei atuar, então por que continuo fazendo isso?”, abriu-se com franqueza, certa vez, Meryl Streep, a atriz multi-Oscar. “A síndrome de impostor é dureza”, definiu Michelle em entrevista. “Duvidamos da nossa capacidade de julgamento, das nossas habilidades e dos motivos para estarmos naquela posição”, reforçou ela.
Um estudo realizado pela Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos, mostrou que 70% das entrevistadas, todas executivas influentes, se sentem “uma fraude”, ou seja, não merecem os cargos que ocupam. A apresentadora e escritora brasileira Rafaella Brites, 34 anos, revela que sente o problema desde a faculdade e que foi piorando à medida que se via mais cobrada, ao ganhar visibilidade e reconhecimento profissional. Em 2020, Rafaella penou para lançar um livro — sucesso de vendas, diga-se de passagem — contando sua experiência com a síndrome. “Não entendia por que as pessoas comprariam meu livro, com tantas escritoras muito mais relevantes. Não me comparar com os outros e continuar escrevendo foi um exercício diário”, lembra.
Experiência semelhante relata a fotógrafa Hannah Lydia, 24 anos, sempre sobressaltada com a perspectiva de descobrirem que é “uma farsa” — mesmo tendo recebido prêmios por seu trabalho. Se não for tratado, em geral com terapia, avisam especialistas, o distúrbio pode desencadear ansiedade e depressão. “A pessoa se sente culpada diante do fracasso e, quando conquista algo, atribui à sorte ou ao destino”, diz a psicóloga Ciça Conte. Reconhecer a existência do problema é essencial, mas, ressalta a consultora de recursos humanos Sofia Esteves, as empresas também precisam fazer sua parte, valorizando a contribuição feminina, uma ação ainda lenta e tímida em vários locais de trabalho. “Cabe às corporações se esforçar para que as mulheres se sintam confortáveis e confiantes”, afirma. Da ultrabem-sucedida Michelle Obama vem a lição definitiva: “Encare os pensamentos negativos, sem deixar que eles a impeçam de ocupar espaços e fazer seu trabalho. A única maneira de crescer e superar os medos é aprender a confiar que sua voz e suas ideias têm valor”. Michelle sabe o que diz.
Publicado em VEJA de 21 de abril de 2021, edição nº 2734