Quem são os milicianos suspeitos de infiltração no partido de Marielle
VEJA mostra que decisão judicial sigilosa aponta "palpável linha de investigação" na eventual participação do Escritório do Crime no ataque à vereadora
A fresca manhã do dia 22 de janeiro de 2019 ganhou ares de fervura em Rio das Pedras e Muzema, quando as diligências da Operação Intocáveis 1, desencadeadas pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público batiam em diversos endereços das comunidades em Itanhangá, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, com o intuito de desbaratar a quadrilha miliciana que atuava na região. Um dos alvos da operação era a Estrada de Jacarepaguá, nº 3145, endereço tido como sede do “Escritório” da organização criminosa.
Localizado em cima de uma padaria em Rio das Pedras, o imóvel bastante frequentado por Ronald Paulo Alves Pereira, o major Ronald, outro alvo preso na ação, é um endereço diretamente ligado a Laerte Silva de Lima, miliciano preso na mesma operação e que se filiou ao PSOL logo depois das eleições de 2016, conforme VEJA revelou nesta semana.
A Polícia Civil do Rio de Janeiro suspeita que Laerte tenha se infiltrado para fins de monitoramento das agendas do partido – a vereadora Marielle Franco (PSOL) seria assassinada pouco mais de um ano depois da filiação do paramililtar junto ao motorista Anderson Gomes em um atentado no Estácio, região central do Rio, cujo carro foi emboscado por um Chevrolet Cobalt prata clonado.
Quem estava fora do radar daquela operação que desmantelaria as principais lideranças da quadrilha criminosa chefiada por Major Ronald e por Adriano Magalhães da Nóbrega, o Capitão Adriano, era a mulher de Laerte, Erileide Barbosa da Rocha, a Lila, que também se filiou ao PSOL em 19 de novembro de 2016 – mesma data que seu companheiro ingressou na legenda, e também sob suspeita de infiltração na sigla. Nervosa logo cedo ao ver os rostos conhecidos presos e exibidos na televisão, Erileide fazia ligações. À época ela sequer desconfiava, mas já estava sendo monitorada pela Divisão de Inteligência do MP do Rio. Às 8h47, um telefonema interceptado pelos agentes mostra ela tentando se livrar de documentos, notebooks, bolsas com registros de contabilidade e carros clonados, frequentemente usados pelo grupo em variadas ações criminosas. A obstrução de justiça, pela qual ela se tornaria ré logo após a 2ª fase da Operação Intocáveis, não livraria seu marido da prisão naquele dia.
Laerte era tido como um dos líderes do braço armado da milícia da região: atuava cobrando taxas e impondo “ordem” com extrema violência. Um relatório de cem páginas do serviço Disque Denúncia sobre ele, obtido com exclusividade por VEJA, mostra que, desde 2014, moradores de Rio das Pedras vinham relatando situações de extorsões, agiotagem, espancamentos, invasão de domicílios, agressões sexuais contra mulheres e adolescentes, além de assassinatos. Em escutas registradas pelo Gaeco e obtidas pela reportagem, ele determinava punições violentas a quem infringisse as regras impostas pela milícia da comunidade. Certa vez, “desabafou” que disparou contra uma moto a esmo.
VEJA teve acesso exclusivo a mais de 4 000 folhas que documentam os meandros de atuação do Escritório do Crime, cuja base é a milícia de Rio das Pedras e Muzema. Embora os investigadores diferenciem o grupo miliciano do bairro do Escritório do Crime, eles são essencialmente indissociáveis. Mesmo para um assassinato sob encomenda, outros subordinados da chefia agiam, por exemplo, na clonagem de carros, no monitoramento de vítimas e em demais etapas do planejamento.
Desde meados de 2008 já se sabia que os milicianos presos na Intocáveis 1 atuavam em um grupo de extermínio da região, conforme a própria denúncia do Gaeco aponta. Em janeiro daquele ano, um entregador de farmácia teria espirrado água em uma parente de Fabiano Cordeiro Ferreira, o Mágico, ao lavar a sua motocicleta. Foi o suficiente para ser jurado de morte: de acordo com as investigações da 32ª DP (Taquara) na época, ele foi assassinado por Mágico, por Maurício Silva da Costa, o Maurição, e por Marcus Vinicius Reis dos Santos, o Fininho, dentro de Rio das Pedras – exceto Mágico, eles foram apontados como membros do Escritório do Crime em depoimento de outro miliciano, o Orlando da Curicica, ao Ministério Público Federal em agosto de 2018, quando o grupo foi revelado pela primeira vez. Onze anos depois, todos eles seriam presos na operação Intocáveis 1.
A teia complexa de relações milicianas do Escritório mostra que ele era sustentado por cerca de setenta “funcionários”, divididos em sete núcleos: lideranças, gerentes, seguranças, policiais corruptos, divisão financeira, seção imobiliária e laranjas, além de assassinatos. Laerte seria “homem de confiança” do núcleo duro da chefia, composto por Capitão Adriano, Major Ronald e Maurição, conforme a denúncia do Gaeco. A ação longínqua do grupo criminoso era sustentada à base de propina a policiais que faziam vista grossa para ilegalidades – alguns deles, policiais civis e militares da ativa, foram presos e se tornaram réus ao longo dos últimos anos.
Nos bastidores, autoridades fluminenses vêm dizendo que o termo “Escritório do Crime” seria uma “invenção da imprensa”. Contudo, o nome veio à tona com o miliciano Orlando de Araújo, o Orlando da Curicica, em depoimento prestado ao Ministério Público Federal em agosto de 2018. A informação foi, posteriormente, confirmada por outro miliciano integrante do Escritório do Crime, Jorge Alberto Moreth, o Beto Bomba, em uma gravação interceptada pela Polícia Federal. O depoimento de Curicica também apontaria o PM reformado Ronnie Lessa como integrante do grupo – algo que tanto sua defesa quanto os investigadores do Rio negam. Em março de 2019, Lessa foi preso junto ao ex-PM Élcio de Queiroz, respectivamente apontados como atirador e motorista do carro clonado que atacou Marielle e Anderson.
Citado por Curicica, Dalcemir é irmão de Dalmir Barbosa, apontado como outro chefe da milícia de Rio das Pedras há muito tempo. Ambos foram presos na Operação Intocáveis 2 no começo deste ano. Há poucos dias, a polícia e o MP do Rio prenderam Taillon Barbosa, filho do líder Dalmir. Taillon havia assumido o comando de uma milícia à frente da construção de prédios irregulares — sinal de que, mesmo atrás das grades, o grupo segue faturando.
Hierarquia
Com treinamento do Batalhão de Operações Especiais (Bope), Capitão Adriano era tido como um “caçador silencioso”. Evitava falar ao celular para não ser monitorado por autoridades e empregava táticas militares do treinamento de elite fornecido pelo estado para as empreitadas criminosas, principalmente nas ações que envolviam assassinatos sob encomenda.
O primeiro registro oficialmente documentado do modo de operação do Escritório do Crime é de 2011, de acordo com um documento da Corregedoria da Polícia Militar – Adriano só seria expulso dos quadros da corporação em 2014. Segundo depoimento de uma testemunha, ao invadir um haras em ao menos duas ocasiões, Adriano, Maurição, Ronald e outros teriam chegado encapuzados, vestidos de preto e fartamente armados. A intenção era saquear, mas, também, tomar posse da propriedade. O grupo teria descido do veículo e virado as câmeras de segurança para evitar registros de sua presença. Só aí Adriano, tal como um poderoso chefão, desceria do carro. O escritório do haras teria sido invadido, revirado e alguns pertences foram levados. Como as acusações não foram comprovadas, mas a invasão à propriedade foi admitida pelo próprio Adriano, ele foi punido pela corregedoria com uma pena de 20 dias de prisão. Dois meses depois, um dos donos do haras, o bicheiro José Luiz de Barros Lopes, o Zé Personal, seria assassinado a tiros dentro de um centro espírita. Antes segurança de Zé Personal, Adriano tinha se virado contra o ex-patrão e é apontado como um dos principais suspeitos do crime.
Oito anos depois, na denúncia da Operação Intocáveis 1, os mesmos Adriano, Maurição e Ronald eram apontados como a suprema liderança da organização criminosa de Rio das Pedras, atuando na cobrança de dívidas e taxas ilegais de moradores pessoalmente, ou por meio de seus homens de confiança – entre os quais, Laerte, o suspeito de se infiltrar no PSOL, que estaria logo abaixo na hierarquia da organização criminosa. Embora tenha negado conhecer Major Ronald e Maurição em depoimento prestado à Delegacia de Homicídios da Capital em fevereiro de 2019, o registro de chamadas captado pelo Gaeco mostra que os contatos telefônicos de Laerte com os dois líderes eram intensos.
Laerte, por sua vez, também respondia a Daniel Alves de Souza, uma espécie de gerente-geral da organização criminosa. Na documentação obtida por VEJA, Daniel chega a comprar passagens de avião para Adriano e para a mãe dele, Raimunda Veras Magalhães. À época da emissão do bilhete, Raimunda era registrada como funcionária do então deputado estadual Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Ela é uma das peças nucleares da denúncia sobre desvio de salários de funcionários do gabinete do filho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Flávio foi denunciado por peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. A denúncia será avaliada pelo colegiado do Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, composto de 25 desembargadores.
Escritório do Crime no caso Marielle e Anderson
Embora polícia e Ministério Público do Rio tenham descartado a participação do Escritório do Crime no atentado contra Marielle e Anderson, a decisão sigilosa da 1ª Vara Criminal Especializada do TJ do Rio, que levou os herdeiros de Adriano, os irmãos Leonardo Gouvêa da Silva, o Mad, e Leandro Gouvêa da Silva, o Tonhão, à cadeia em 30 de junho deste ano indica o contrário. “Vale destacar, também, a palpável linha de investigação no sentido do possível envolvimento da organização criminosa no homicídio consumado das vítimas MARIELLE FRANCISCO DA SILVA e ANDERSON PEDRO MATIAS GOMES.”
A decisão segue: “Ressalte-se, ainda, a estreita vinculação da organização criminosa com o reconhecido grupo criminoso de natureza paramilitar que atua na comunidade de Rio das Pedras, no Rio de Janeiro, que foi alvo da operação denominada “INTOCÁVEIS” (que teve por base elementos de prova decorrentes do procedimento investigativo que lastreia a presente demanda), deflagrada em 22.01.2019”.
Tudo indica que Laerte não fazia parte do braço do consórcio criminoso que mata sob encomenda – um dos ramos de atuação do Escritório. Erileide, por sua vez, fazia a contabilidade do grupo, supostamente sem atuar com armas, mas sabendo sobre toda a forma de organização da máfia, inclusive gerenciando carros clonados.
O PSOL soube por meio da polícia das filiações, mas não providenciou as expulsões dos milicianos na tentativa de não atrapalhar as investigações da polícia – após VEJA revelar a suspeita de infiltração, o partido estava realizando os trâmites de seu estatuto para a retirada de ambos dos quadros da legenda. Cabe, agora, às autoridades responderem o porquê dos réus pela milícia de Rio das Pedras e Muzema terem se filiado à legenda de esquerda. Pelo histórico documentado de ambos em atividades criminosas, parece estar longe de uma suposta afinidade com os ideais da sigla de Marielle.