Os ministros Alexandre Padilha (Relações Institucionais) e Nísia Trindade (Saúde) têm, aos olhos da classe política, uma relação de compadrio, já que ele foi um dos responsáveis pela indicação dela para uma das mais cobiçadas pastas da Esplanada dos Ministérios. Essa parceria tem sido testada desde o início do terceiro mandato presidencial de Lula, período em que tanto o padrinho quanto a afilhada vivem sob pressão do Centrão, que quer a demissão de ambos. A ofensiva é permanente e tem como pano de fundo o controle do caixa da Saúde, cujo orçamento anual supera a casa de 230 bilhões de reais. No fim de fevereiro, a própria equipe de Nísia Trindade deu munição aos adversários políticos ao divulgar uma nota técnica sobre aborto legal. O texto estabelecia que não há limite temporal para a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei e, na prática, anulava uma decisão da gestão de Jair Bolsonaro que permitia o procedimento apenas até 21 semanas e seis dias de gestação. Como o tema é desgastante para o governo, formou-se a confusão.
Nas redes sociais, bolsonaristas lançaram mão do caso para fustigar o presidente, principalmente entre os evangélicos, segmento em que 62% desaprovam o trabalho de Lula, segundo pesquisa Genial/Quaest. Houve reações também no Congresso, que é de maioria conservadora. Para tentar conter o desgaste, Padilha telefonou para Nísia e, na conversa, combinaram de agir rapidamente. Assim foi feito. O ministério suspendeu os efeitos da nota técnica, alegando que não havia sido analisada por “todas as esferas necessárias” e pela consultoria jurídica da pasta. Em conversas reservadas, integrantes do governo aventaram, inclusive, a possibilidade de o texto ter sido vazado como parte de uma conspiração destinada a provocar a queda da ministra. Desde o ano passado, o principal interessado no cargo é o Centrão, que até já escolheu um nome para assumir o posto. Um dos líderes do grupo, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), aproveitou a deixa para dizer que o tema aborto precisa ser debatido com a sociedade antes de qualquer mudança em suas regras. Numa rede social, ele postou uma foto ao lado do primeiro-secretário da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e capitalizou: “A nota técnica felizmente foi revogada hoje, após o nosso encontro”.
Apesar de a flexibilização das normas sobre aborto legal ser uma bandeira do PT, o governo Lula não quer saber desse assunto. Não apenas pela resistência apresentada por evangélicos e setores do Congresso, mas porque a sua prioridade é a agenda econômica. A nota técnica poderia criar desgaste internamente para Nísia Trindade, que já é alvo de uma intensa campanha de fritura. Em dezembro, por exemplo, políticos do Centrão reclamaram de uma portaria do Ministério da Saúde que, segundo eles, dificulta o repasse de verbas indicadas por deputados e senadores. Em janeiro, retomaram a carga repercutindo a informação de que um filho da ministra virou secretário da prefeitura de Cabo Frio (RJ) depois de a pasta enviar 55 milhões de reais ao município. Nísia negou qualquer vinculação entre um fato e outro e ainda defendeu o currículo do rebento. Em fevereiro, Arthur Lira e líderes partidários assinaram um requerimento pedindo esclarecimentos sobre os critérios utilizados pela Saúde na liberação de recursos apadrinhados por parlamentares.
Na época, o presidente da Câmara e deputados próximos a ele alegavam que o ministério estava privilegiando prefeituras comandadas pelo PT e aliados de esquerda ao desembolsar as verbas. Citavam os casos de Diadema e Araraquara, ambas chefiadas por antigos tesoureiros de campanhas presidenciais de Lula. Acossada, Nísia resistiu ao tranco, reuniu-se com líderes de partidos para prestar esclarecimentos e tentou provar que os repasses da pasta seguem critérios técnicos. Ela se manteve firme no cargo, mas, numa coincidência típica daqueles enredos da política brasiliense, demitiu um de seus principais secretários, que era alvo de queixas de parlamentares. A epidemia de dengue também tem sido usada para tentar desestabilizar a ministra. Em março, o Brasil superou a marca de 1 milhão de casos prováveis da doença desde o início do ano, cinco vezes mais do que no mesmo período de 2023. Foram registradas também mais de 200 mortes desde janeiro. “Ministra da dengue”, atacou o senador Ciro Nogueira numa rede social. Chefe da Casa Civil de Bolsonaro, Nogueira é correligionário de Lira no PP, partido que quer indicar o eventual substituto de Nísia Trindade.
A preocupação com a saúde pública e a nobreza de propósitos não são propriamente os principais motores da ofensiva do Centrão, que está de olho no orçamento e na capilaridade do ministério. Para o grupo, Nísia atua sob a mentoria de Padilha, que seria o responsável pelo descumprimento de acordos e pela frustração de expectativas no campo da liberação de emendas parlamentares. Contrariado com a atuação do ministro, Arthur Lira cortou o diálogo com Padilha, que é formalmente o articulador político do governo, e elegeu como interlocutor o chefe da Casa Civil, Rui Costa, de quem já foi desafeto — tão desafeto que sugeriu a Lula que o demitisse. Na abertura dos trabalhos do Legislativo, Lira foi só deferência a Costa e ignorou Padilha, que, com bom humor, tangenciou a polêmica dizendo ser ministro de Relações Institucionais, e não de “relações interpessoais”. No ano passado, o Centrão tentou forçar a demissão de Padilha. Na época, Lira vivia a elogiar o líder do governo na Câmara, o petista José Guimarães (CE), o que foi interpretado como uma sugestão de substituto em caso de troca no ministério.
Ciente das articulações, Padilha comentou com pessoas próximas que Guimarães ficou tentado com a possibilidade de substituí-lo, mas que o sonho passou. Em público, o ministro evita gestos que possam desagradar a Lira, mas reservadamente dá a entender que o presidente da Câmara sofre uma espécie de crise de abstinência orçamentária. No governo Bolsonaro, o deputado fazia parte de um seleto grupo de parlamentares que mandava e desmandava na hora de liberar emendas parlamentares. Como essa condição privilegiada lhe garantiu poder e influência inéditos, Lira gostaria de continuar dando as cartas na gestão Lula, sem ter de negociar com o presidente e com ministros o desembolso de verbas públicas, principalmente aquelas atreladas aos maiores ministérios, como o da Saúde. Como isso não foi possível, o Centrão passou a fazer o que pode para tomar o lugar de Nísia Trindade e derrubar Padilha. É o que se diz no Palácio do Planalto, onde também corre a versão segundo a qual, se o padrinho cair, a afilhada não resistirá muito tempo no cargo (o inverso já preservaria Padilha por mais tempo).
Na terça-feira 5, o presidente da Câmara se reuniu com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e líderes de partidos para debater a proposta do governo de acabar com um programa de estímulo ao setor de eventos. Escanteado, Padilha nem sequer participou do encontro. Enquanto a reunião ocorria, ele se encontrou com senadores para combinar como seria o compromisso que teriam, horas depois, com Lula. Bem-humorado, o ministro comentou com assessores que, como o governo estava representado na reunião com Lira, ele ganhou tempo para avançar nas tratativas com o Senado. O saldo, portanto, teria sido positivo para ele e o Planalto. Enquanto Nísia é neófita em Brasília, Padilha tem larga experiência nos jogos de poder da capital. Em 2003, ele estava no gramado da Esplanada dos Ministérios para acompanhar a primeira posse de Lula na Presidência, mas logo foi convocado para uma função pública. No segundo mandato do petista, assumiu uma subchefia na Secretaria de Relações Institucionais e, depois, o próprio comando da pasta.
Em 2011, a convite da presidente Dilma Rousseff, ascendeu a ministro da Saúde, provocando a ira do MDB. Contrariados, os emedebistas urdiram diferentes planos para retomar o ministério, que só voltou para o partido em 2015, no segundo mandato de Dilma, quando a necessidade fez a então mandatária se entregar de vez ao Centrão daquela ocasião. Como tem uma extensa ficha de serviços prestados a governos do PT e uma boa relação com Lula, Padilha não se sente ameaçado no cargo. Seus assessores costumam dizer que o mandato de Lira como presidente da Câmara terminará em fevereiro de 2025, enquanto o ministro ficará no Planalto até 2026. A conferir. O pragmatismo de Lula já sacrificou muitos companheiros no passado — alguns deles bem mais estrelados do que Alexandre Padilha e Nísia Trindade.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2024, edição nº 2883