“A água está subindo”, disse em abril deste ano o diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo, ao então ministro da Justiça, Sergio Moro. O alerta era uma referência ao avanço do inquérito do Supremo Tribunal Federal que apura ameaças e fake news contra a Corte. A investigação já preocupava o presidente Jair Bolsonaro porque havia chegado ao seu filho Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), conforme revelou a coluna Radar, de VEJA. O Zero Dois é suspeito de chefiar uma rede de distribuição de ataques a adversários, ao Congresso e ao STF. Na quarta 27, uma operação da PF, a mando do ministro Alexandre de Moraes, cumpriu 29 mandados de busca e apreensão de celulares, computadores e documentos em endereços ligados a deputados da tropa de choque governista e ativistas do bolsonarismo, entre eles dois empresários graúdos — Luciano Hang, dono da Havan, e Edgard Corona, proprietário das redes de academias Bio Ritmo e Smart Fit. No seu despacho, o magistrado citou oficialmente o grupo que operaria no Palácio do Planalto e seria comandado pelo Zero Dois: “As provas colhidas e os laudos periciais apresentados nesses autos apontam para a real possibilidade de existência de uma associação criminosa, denominada como ‘Gabinete do Ódio’, dedicada à disseminação de notícias falsas, ataques ofensivos a diversas pessoas, às autoridades e às instituições”.
A suspeita assombra o bolsonarismo desde as eleições de 2018 e resultou em ações que ainda tramitam no Tribunal Superior Eleitoral e na CPMI das Fake News, no Congresso. À época, Hang já era acusado de apoiar a distribuição em massa de mensagens por WhatsApp, algo que ele continua negando até hoje. Agora, Hang e outros foram citados como financiadores de uma articulação contra o Estado democrático de direito. “Há informações de que os empresários aqui investigados integrariam um grupo autodenominado de ‘Brasil 200 Empresarial’, em que os participantes colaboram entre si para impulsionar vídeos e materiais contendo ofensas e notícias falsas”, escreveu Moraes, que ordenou a quebra dos sigilos fiscal e bancário de Hang e Corona. O ministro incluiu no despacho provas como mensagens do dono da Smart Fit sugerindo investimentos para ampliar a disseminação de materiais contra o Congresso e o STF. Horas depois da operação autorizada por Moraes, o procurador-geral da República, Augusto Aras, entrou com recurso no STF para a suspensão do inquérito. Segundo ele, as buscas deveriam ter anuência da procuradoria para evitar “constrangimentos desproporcionais”. Até a última quinta, 28, o recurso não havia sido julgado pela Suprema Corte.
ASSINE VEJA
Clique e AssineIndependentemente do resultado, a operação jogou suspeitas sobre o que pode ser um lado mais obscuro da atuação do Brasil 200, exemplo de iniciativa empresarial de cunho político que deu errado. Na carta-manifesto de sua criação, em janeiro de 2018, Flávio Rocha, dono da Riachuelo, convocou o empresariado a se posicionar politicamente. O objetivo era derrotar o petismo e transformar o país em uma economia genuinamente liberal. Rocha lançou sua pré-candidatura à Presidência, mas desistiu e passou a apoiar Bolsonaro. Com o agravamento da crise no governo, porém, o grupo começou a se esfacelar. No início de maio, Rocha anunciou sua saída. O desembarque veio depois que o presidente do grupo, seu sobrinho, Gabriel Rocha Kanner, criticou o governo pela saída de Moro. As declarações pegaram mal entre os empresários identificados com Bolsonaro. Daí também bateram em retirada Sebastião Bomfim, dono da Centauro, João Appolinário, da Polishop, e Corona. “Não queremos nos envolver no varejo da política”, diz Appolinário. Tudo isso pode ser verdade, mas não é toda a verdade. “Falar mal do PT, que estava desgastado com corrupção, é fácil. O problema é criticar o governo e virar alvo dessas milícias digitais. Você pode cair em desgraça só de ter um bom relacionamento com alguém que os bolsonaristas consideram inimigo, como o João Doria”, afirma um empresário, referindo-se ao governador de São Paulo.
Além de atingir a turma do Brasil 200 e personagens populares do bolsonarismo nas redes — como os influenciadores Allan dos Santos, Bernardo Küster e Sara Winter —, a decisão do ministro Moraes exige que sejam ouvidos os deputados federais Bia Kicis (DF), Carla Zambelli (SP), Filipe Barros (PR), Luiz Philippe de Orleans e Bragança (SP), Daniel Silveira (RJ) e Junio Amaral (MG) e os estaduais Gil Diniz (SP) e Douglas Garcia (SP), todos do PSL. Era a eles que Bolsonaro se referia quando enviou a Moro, por celular, a notícia de que a PF estava “na cola de dez ou doze deputados bolsonaristas”, seguida de um comentário: “Mais um motivo para a troca”, em referência ao desejo de mudar a direção da PF. Caso o recurso de Aras não prospere, a dor de cabeça do presidente pode aumentar com a polícia e o STF tendo acesso aos celulares e computadores de sua tropa de choque e ainda aos dados bancários de empresários governistas. A água estava mesmo subindo — e pode transbordar.
Publicado em VEJA de 3 de junho de 2020, edição nº 2689