‘Me puniram por ser gay’, diz PM que se tornou alvo de intolerância
'Como uma instituição que deveria zelar pelos direitos humanos se enreda em tanto preconceito?', pergunta Henrique Harrison, de 29 anos
Sou formado em direito e, há dois anos, fui aprovado no concurso para policial militar do Distrito Federal. Fiz uma mudança radical de rumo em minha vida: trabalhava como DJ, em um ambiente de vasta diversidade, e de repente me vi em um universo ultraconservador, no curso para formação de PMs, um caminho que queria trilhar. Sou homossexual assumido, hoje casado, e já imaginava que pudesse me tornar alvo de preconceito ali, mas nunca pensei que enfrentaria a intolerância mais básica, fruto de um machismo que não cabe mais neste século XXI. No princípio, ela se pronunciava de forma velada, com olhares de estranheza, sem nenhuma palavra. Resolvi me assumir gay no primeiro dia de aula, deixando claro quem eu era para evitar fofocas e especulações. Parte da turma até me parabenizou pela coragem.
Os problemas começaram para valer quando expus meu namoro no Instagram. Aí veio uma enxurrada de comentários depreciativos de colegas, que mudaram o tratamento comigo. Por mais que eu executasse com excelência todas as atividades e matérias, levei oito punições — muitas incomuns para o resto da tropa, como uma por deixar o cantil sem água e outra, acreditem, por terem achado um pelo na minha farda. Isso atrapalhou minha classificação geral: quanto melhor sua pontuação, mais chances tem de escolher em qual setor vai atuar. Alguns policiais recomendavam que eu fosse mais discreto e não postasse fotos exibindo minha vida privada. Às vésperas da formatura, um tenente falou: “Cuidado com o que fará na festa. Tivemos uma reunião só para tratar de você”. Não me intimidei. Levei namorado e família ao baile e, sim, coloquei fotos nas redes, exercendo a liberdade que me cabe. No dia seguinte, chegou um áudio no WhatsApp de um coronel aposentado dizendo que eu estava arruinando uma imagem construída ao longo de dois séculos de corporação. O áudio circulou pela PM Brasil afora. Recebi ameaças e tive muito medo.
O caso ganhou vulto e acabou nas mãos do Ministério Público. Os promotores me chamaram na condição de vítima. No fim, onze pessoas foram indiciadas pelo crime de homofobia. Decidi fazer um vídeo relatando como era ser gay em um mundo militar. Falei dos entraves à carreira e do quanto me sentia acuado. Ao fundo, havia uma réplica de arma e abriram uma sindicância contra mim. Diziam que eu estava portando a arma em situação imprópria. Mas era uma cópia e, mesmo se fosse real, não seria caso de porte, mas de posse — enfim, não havia nenhum fundamento jurídico. Mesmo assim, pediram que eu deixasse minha arma, a de verdade, no batalhão. Denunciei a história para a Câmara Legislativa do DF, o que foi seguido de nova sindicância, dessa vez afirmando que eu mentia. Entendi como um cala-boca. A PM não gosta desse tipo de publicidade.
E as represálias não cessaram. Me puniram pelo tal vídeo com a réplica da arma, justificando no final que eu havia desrespeitado meu superior, um capitão que me chamava de “aparecidão”. A decisão é vaga, não explica como fui desrespeitoso com ele. Pedi que a revissem e aguardo resposta. A punição macula a minha ficha — somada a outras, pode levar à expulsão da PM. Recentemente, instauraram mais uma, também sem motivação razoável, só por me assumir gay. Não entrei na corporação para ser militante, mas não abri mão de me mostrar como sou. Há dois meses fui diagnosticado com depressão e ansiedade. Estou afastado e perdi 30% dos rendimentos. Sigo estudando para ser delegado. Fico me perguntando: como uma instituição que deveria zelar pelos direitos humanos se enreda em tanto preconceito? Estou perdendo o medo de falar. Assim, ajudo os que ainda não encontraram a coragem para se expor.
Henrique Harrison em depoimento dado a Marina Lang
Publicado em VEJA de 11 de agosto de 2021, edição nº 2750