Depois de passar mais de um ano colhendo provas e de encaminhar à Justiça do Rio de Janeiro denúncia contra o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) por peculato, lavagem de dinheiro, organização criminosa e apropriação indébita — os delitos embutidos na prática da célebre rachadinha em seu gabinete, quando era deputado estadual —, o Ministério Público fluminense viu seu trabalho ir por água abaixo: o Superior Tribunal de Justiça enterrou o caso com uma série de decisões favoráveis ao senador, sendo a principal a que anulou a quebra dos sigilos bancário e fiscal dele e de seus ex-assessores, base de toda a apuração. Cortada a via criminal, o MP resolveu retomar um inquérito civil — que pode levar à perda dos direitos políticos dos envolvidos por improbidade administrativa — como forma de não deixar passar impune um esquema que teria desviado 6,1 milhões de reais. Segue, no entanto, esbarrando no mesmo obstáculo: viabilizar as provas que amealhou. Um novo pedido de quebra dos sigilos foi recusado em dois momentos e aguarda agora a votação de recurso, parte decisiva do inquérito ao qual VEJA teve acesso.
Ao que tudo indica, o destino dessa frente que se abre também é morrer na praia. Apesar de na prática o MP já saber de tudo o que aconteceu no gabinete do deputado na Alerj, não tem os meios legais para responsabilizá-lo. O novo pedido para acessar os dados bancários e fiscais de Flávio Bolsonaro e assessores foi parar nas mãos da juíza Neusa Regina Leite, que o recusou no início de dezembro. Ela alegou que os promotores já haviam reunido elementos suficientes para entrar com a ação, como se as provas mais robustas não tivessem sido anuladas pelo STJ, obrigando o MP a montar seu caso sem mencionar o que não pode. No documento sigiloso encaminhado à juíza, quase toda a argumentação para sustentar as quebras de sigilo é tecida com base em reportagens produzidas a partir de informações do próprio MP, do tempo em que não haviam sido anuladas pelo STJ.
No total, 39 pessoas e empresas estão citadas. A lista inclui gente que ficou fora da ação criminal, como a parentada de Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher de Jair Bolsonaro, que morava no sul fluminense enquanto supostamente trabalhava no gabinete da Alerj e sacava quase a totalidade de seus salários. Diante da recusa da juíza de autorizar acesso às provas que efetivamente apontam o caminho das pedras da rachadinha, o promotor Eduardo Santos de Carvalho encaminhou um recurso carregado de ironia. “A seguir a lógica proposta, o MP haveria de ser dotado de poderes divinatórios para descrever — sem acesso aos dados bancários ou fiscais dos investigados — a mecânica dos eventos possivelmente caracterizadores de enriquecimento ilícito”, escreveu. Não adiantou. A desembargadora que analisou o recurso manteve monocraticamente a decisão de Neusa Leite.
Agora, o caso aguarda a definição da data em que será julgado pelos cinco magistrados do colegiado de uma Câmara Cível. Se o entendimento da relatora for mantido, o MP terá duas opções: tentar recurso em Brasília, palco de reveses recentes, ou apresentar a ação com base no pouco que tem de concreto, material que os próprios promotores declaram ser frágil, dando margem para a defesa buscar a suspensão do processo. “O Ministério Público se entregou ao dizer que não tem elementos suficientes”, diz uma pessoa que acompanha o caso.
Escolado pelas sucessivas derrotas na Justiça, o tom do MP no novo pedido, ao falar das provas, é de extrema cautela. Até a confissão da ex-assessora Luiza Souza Paes de que desviava seus vencimentos lá aparece como tendo sido “divulgada pela imprensa”, visto que os promotores não tiveram acesso ao depoimento e Luiza não foi ouvida novamente. Enquanto o inquérito das irregularidades do senador agoniza, outro filho do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos -RJ), também investigado por suspeita de rachadinha, teve seus sigilos e os de ex-assessores quebrados em maio de 2021, mas o cruzamento de dados patina em marcha lenta. O mesmo promotor Eduardo de Carvalho, aquele do recurso irônico, toca esse inquérito com o colega Alexandre Murilo Graça. Ocorre que Graça concorre a uma vaga de desembargador no Tribunal de Justiça, esteve na festa de aniversário da advogada de Flávio Bolsonaro, Luciana Pires, e, segundo gente graúda do Judiciário fluminense, já disse que dificilmente algo envolvendo Carlos Bolsonaro acontecerá neste ano eleitoral. A pizza, pelo jeito, é tamanho-família.
Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2022, edição nº 2776