Mulheres, volver! Marinha dá passo histórico, mas obstáculos persistem
Foi formada a primeira turma feminina de combatentes. Inclusão nas Forças Armadas, porém, ainda enfrenta vários entraves no Brasil
Aos 19 anos, Letícia Alves deixou a família em Navegantes, em Santa Catarina, e partiu para o Rio de Janeiro com um objetivo claro: seguir a carreira militar, inspirada pelo pai, sargento do Exército. Após quatro meses de treinamento intenso no Centro de Instrução Almirante Milcíades Portela Alves (Ciampa), acordando diariamente às 4 horas, ela se formou no dia 5 deste mês com outras 113 alunas, na primeira turma de fuzileiras navais da história do país. O marco é duplamente relevante. Primeiro, porque elas irão integrar uma das corporações de elite das Forças Armadas nacionais. Segundo, porque é a primeira vez que mulheres irão ocupar postos de combate, um dos tabus mais resistentes nas casernas brasileiras. “É um lugar muito fechado para homens. Essa primeira turma mostrou que a gente consegue fazer as mesmas coisas que eles. Ou, às vezes, melhor”, celebra Letícia. A importância histórica foi ressaltada pelo ministro da Defesa, José Múcio. “Vocês estão desbravando um caminho”, discursou no evento.
Apesar do real avanço, há, porém, muita estrada para percorrer. Hoje, há pelo menos 35 900 mulheres em um contingente total de 346 900 militares nas três forças, ou cerca de 10% — no Exército, é pouco mais de 6% (veja o quadro).A Marinha, que agora colocou as mulheres na linha de frente, foi pioneira no país ao admitir a participação feminina em seus quadros já em 1980. Na década seguinte, uma reestruturação permitiu a inovação também em cargos de comando, mas apenas em 2012 uma mulher se tornou oficial-general. “Com a formatura dessa turma, completamos o ciclo, permitindo mulheres em todos os corpos e quadros da Marinha”, diz o capitão de Mar e Guerra Vanderli Nogueira Júnior, comandante do Ciampa. Para isso, foi preciso fazer reformas no quartel, adaptar banheiros e adotar medidas de segurança, como reconhecimento facial na entrada de alojamentos. Homens tiveram palestras sobre comportamento e conscientização.
A pressão pela mudança vem aumentando nos últimos tempos. Em outubro de 2023, a Procuradoria-Geral da República entrou com ações no Supremo contra as três forças para acabar com barreiras (como o veto à ocupação de alguns postos) e cotas (às vezes inferior a 10%) impostas à participação feminina. Os processos estão em tramitação, mas o grau de dificuldade é tamanho que até o governo Lula, em tese progressista, se manifestou contra a derrubada das restrições. Um dos argumentos da Advocacia-Geral da União (AGU) é de que o ofício militar tem “peculiaridades” que justificariam a existência de cargos restritos aos homens. O governo cita “resiliência física, intelectual, moral e emocional para enfrentar as agruras do treinamento”. Mas a gestão também acena na outra direção. O Ministério da Defesa prepara decreto para permitir o alistamento militar voluntário de mulheres a partir de 2025. A norma, redigida em acordo com os chefes do Exército, Marinha e Aeronáutica, deve ser encaminhada à Casa Civil em agosto. Será preciso adaptar a estrutura dos quartéis e alojamentos em todo o país, mas ainda não há estimativas de tempo e orçamento necessários.
O titubeio brasileiro contrasta com o que ocorre na maioria dos países. Na Noruega e em Israel, as mulheres são até obrigadas a cumprir serviço militar e já ocupam cargos de liderança. Desde 1983, as francesas têm acesso à maioria das carreiras militares. Os Estados Unidos, cujas normas serviram de inspiração à Marinha do Brasil, têm mulheres em altos cargos da hierarquia militar — a derrubada das restrições ocorreu em 2013, com Barack Obama. O Reino Unido acabou com suas barreiras em 2018.
A caminhada, porém, não foi fácil. As mulheres enfrentaram ao longo do tempo obstáculos como machismo e um grande período de apagamento. A história das guerras tende a ser contada da perspectiva masculina, como lembra a bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, Nobel de Literatura, no livro A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, que revela a história esquecida de centenas delas que atuaram na Segunda Guerra, de enfermeiras a franco-atiradoras. Se recuar no tempo, há Joana d’Arc, que liderou tropas francesas na Guerra dos Cem Anos, e a baiana Maria Quitéria de Jesus, que se passou por homem, lutou na Guerra da Independência e foi reconhecida como a primeira mulher do Exército Brasileiro. A pioneira turma de fuzileiras navais marca um capítulo importante na história das Forças Armadas, mas é preciso ainda marchar muito mais.
Publicado em VEJA de 12 de julho de 2024, edição nº 2901