Municípios lançam dúvidas sobre dados do Censo, e briga chega à Justiça
O que os move é o reparte do bilionário Fundo de Participação dos Municípios (FPM), calculado com base nos habitantes de cada local
Em dezembro passado, a pequena Venâncio Aires, a 130 quilômetros de Porto Alegre, viu sua população encolher de uma hora para outra. Nada fora do comum se abateu sobre a cidade de estimadas 72 300 pessoas (menos 3 800 agora), que não registrou tragédia natural nem debandada de moradores. O fenômeno tem, ao que tudo indica, raízes fincadas no campo frio das estatísticas, recém-divulgadas em uma prévia do Censo produzido pelo IBGE. “Foi uma surpresa, uma vez que nossos registros de nascimento e morte apontam justamente para um crescimento médio de 400 homens e mulheres por ano na última década”, diz o prefeito Jarbas da Rosa (PDT).
O enrosco em solo gaúcho, que lança dúvida sobre os dados oficiais, é uma amostra de algo de vulto muito maior e com elevado potencial de barulho. Ao todo, 702 municípios por todo o país, um de cada oito, registraram um declínio na contagem populacional e já começam a questionar na Justiça o levantamento, caso de Venâncio Aires e tantos outros. O que os move é o reparte do bilionário Fundo de Participação dos Municípios (FPM), calculado com base nos habitantes de cada local — quanto menos numerosos forem, menor a bolada federal que pingará nos cofres. Pois quem acompanha a contenda, de lado a lado, acha que essas cidades têm boas chances de levar a melhor, em um imbróglio sem precedentes na história dos Censos.
No centro da disputa está um mar de pontos de interrogação sobre os métodos aplicados pelo IBGE, que toca com atraso o mais detalhado mapa demográfico de qualquer nação. No Brasil, o primeiro Censo data de 1872 e, desde 1950, nunca deixou de ser realizado e trazido à luz para cumprir o seu papel de apontar tendências e nortear as políticas públicas. Com a pandemia, o processo naturalmente emperrou, daí a aferição ter se arrastado de 2020 até agora, com previsão de ser divulgada por completo em março. A contagem da população, porém, não poderia esperar — por lei, tinha de estar pronta no máximo em 31 de dezembro de 2022, exatamente para que se definisse o valor dos repasses municipais. E foi a pressa que impôs a necessidade de se pôr em prática um recurso inédito: fazer uma projeção da população com base nos dados coletados apenas parcialmente no ano passado, no lugar de se contabilizar os brasileiros um a um, como ocorre por definição em um Censo. “O que o IBGE fez não é científico nem confiável do ponto de vista estatístico”, opina um demógrafo que participou do processo, sob a condição de anonimato.
No terreno das estimativas, considerados os números de 2010 e o ritmo de crescimento da população, ela subiria de 196 para 215 milhões de habitantes na década, de acordo com projeções atualizadas anualmente. Por isso causou particular espanto o fato de o primeiro número anunciado ter ficado na casa dos 200 milhões. Os próprios técnicos puseram em dúvida a conta, que, refeita, cravou 207,8 milhões de pessoas vivendo hoje no Brasil. Diante das idas e vindas, os demógrafos chegaram a se posicionar contra a divulgação do conteúdo do relatório durante uma reunião com a comissão de acompanhamento do Censo. Tamanho era o desconforto que integrantes das coordenadorias de Metodologia e Qualidade e de População e Indicadores Sociais pediram que seus nomes fossem retirados da nota técnica que explicava as mudanças. Mesmo assim, o IBGE seguiu adiante, com o aval do órgão consultivo formado por catorze especialistas — apenas a ex-presidente do órgão Martha Mayer, se absteve. “Foi uma escolha de Sofia. Optamos pela melhor alternativa possível”, diz a demógrafa Suzana Cavenaghi, da comissão.
A situação atual é, na verdade, o retrato acabado de um enredo de trapalhadas e erros que vem se desenrolando nos últimos tempos no IBGE. Além do forçoso adiamento por duas vezes, os recursos para o levantamento minguaram 30%, o que levou a um drástico corte de verbas em um setor crucial para o bom funcionamento do Censo, o de divulgação, que orienta a população sobre a importância de abrir suas casas para os recenseadores. Sem isso, muitos deram com a cara na porta e viu-se então um efeito dominó: como eles ganham por entrevista, passaram a faturar menos e uma parcela, já bem treinada, desistiu da missão, gerando um déficit — em certos momentos, apenas metade dos contratados estava nas ruas. O atraso de salários também pesou. Nenhum desses problemas chegou até agora aos ouvidos da ministra do Planejamento, Simone Tebet, que tem o IBGE sob sua alçada e está debruçada sobre nomes para presidir o instituto.
Embora o ponto-final dessa novela esteja previsto para daqui a dois meses, há cidades em que metade das residências ainda não foi visitada. A atual gestão garante que todos os esforços estão sendo feitos para aumentar a coleta de dados e reduzir o grau de incerteza. O que se sabe sobre a gangorra demográfica nacional é que ela delineia um movimento de diminuição da população brasileira, a exemplo de inúmeros países, mas só deve acontecer mesmo em 2047, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU). Que as projeções estatísticas não antecipem o fenômeno. “Se houver mesmo discrepância entre projeção e realidade, há duas alternativas: ou jogam-se os dados fora ou faz-se um trabalho duro para corrigi-los”, avalia o demográfico José Eustáquio Alves. “Existe muita pesquisa por trás da metodologia que adotamos e, pela primeira vez, utilizamos ferramentas tecnológicas que permitiram cruzamentos com outros bancos de dados. O Censo é sólido”, defende Cimar Azeredo, presidente em exercício do IBGE. Essencial para a formulação de políticas que podem melhorar o bem-estar do brasileiro, o Censo precisa ser confiável para que elas sejam efetivas.
Publicado em VEJA de 25 de janeiro de 2023, edição nº 2825