Na contramão do país, parte do Judiciário resiste à volta ao presencial
A retomada das audiências presenciais não é uma questão menor. O uso dos sistemas virtuais não substitui totalmente o encontro entre o juiz e as partes
A necessidade de proteção contra a pandemia da Covid-19 impactou o mundo de forma radical, há mais de dois anos. O Brasil, de modo geral, adotou a correta política do “fique em casa”, uma recomendação científica para evitar que o vírus circulasse, e viu popularizar no país o termo home office, usado para designar os postos avançados de trabalho que cada cidadão criou em seu lar. Hoje, a maior parte da sociedade faz (ou já fez) o caminho de volta à normalidade após a queda no número de mortes e infecções, mas há casos em que o retorno ocorre com dificuldade, como infelizmente tem sido verificado em boa parte dos tribunais brasileiros. A resistência à volta à rotina pré-pandemia não é incomum — tem ocorrido no serviço público, na iniciativa privada ou nas instituições de ensino —, mas, quando envolve um setor importante, há risco de agravar situações já delicadas e comprometer um direito que o cidadão precisa ver garantido: o acesso à Justiça.
Um caso que ilustra bem o problema ocorreu no Rio de Janeiro, com o Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região (TRT1), um dos principais fóruns trabalhistas do país. Lá, foi preciso que a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) fosse à Justiça com um pedido de providências para que os magistrados retomassem as audiências presenciais, como determina uma orientação do Conselho Superior da Justiça do Trabalho. Na ação, a OAB narra ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) um rosário de problemas, com represamento de ações e dificuldade para encontrar os juízes nos locais de trabalho. O CNJ determinou a retomada imediata de audiências e a adoção das sessões presenciais como regra. Em audiência de conciliação ficou acertado que a videoconferência será uma exceção, reservada aos casos em que as partes estejam de acordo. “Os advogados não são contra a audiência telepresencial, e sim que as audiências sejam feitas apenas dessa forma”, afirma o presidente da OAB-RJ, Luciano Bandeira.
O caso está longe de ser exceção. No Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), também no Rio, cinco das oito turmas de desembargadores não fazem audiências presenciais desde que começou a pandemia. Na 8ª Turma, especializada em direito administrativo, por exemplo, os desembargadores Marcelo Pereira Silva, Ferreira Neves, Guilherme Diefenthaeler e Marcelo Guerreiro só se encontraram uma vez, e em 2021. Em razão da baixíssima frequência há, inclusive, uma apuração em curso para verificar se os magistrados dos tribunais com sede no Rio estão residindo fora da cidade, bem como a regularidade de licenças médicas concedidas há muito tempo, com renovações sucessivas.
A postura é tão generalizada que obrigou a cúpula do Judiciário a fazer uma reprimenda recentemente. Em maio, o presidente do Conselho da Justiça Federal, ministro Humberto Martins, e o corregedor-geral, Jorge Mussi, fizeram circular um ofício no qual lembravam a “fundamental importância da presença física das autoridades representativas do Poder Judiciário Federal em suas unidades de lotação”. “A contingência do teletrabalho estabelecida por força da pandemia de coronavírus não afasta a obrigatoriedade de ser mantido o serviço presencial nas seções e subseções judiciárias”, diz o documento, no qual também pedem que os próprios TRFs e as corregedorias regionais fiscalizem o cumprimento da medida.
Mais do que uma recusa ao retorno da normalidade, pode estar havendo uma infração à lei. A Constituição e a Lei Orgânica da Magistratura determinam que os juízes devem morar em sua própria comarca. Há suspeitas de que isso não está acontecendo. No Ceará, a OAB enviou um ofício aos tribunais pedindo que eles cumpram essa regra. Em Rondônia, o presidente da OAB regional, Márcio Nogueira, conta que praticamente não encontra os magistrados da Justiça do Trabalho sediados em Porto Velho. Após ouvir relatos de que nem a presidente do TRT14, Maria Cesarineide de Souza Lima, mora na comarca, as OABs de Rondônia e do Acre questionaram formalmente se algum juiz mora fora da área de jurisdição. Em resposta por ofício, a desembargadora Lima recusou-se a fornecer os endereços e disse que esse tipo de informação só interessa ao órgão disciplinar do TRT, não à OAB. “Em alguns casos, temos sérias dúvidas se o magistrado de algum modo tocou naquele processo ou se foi tudo feito por assessores”, afirma Nogueira, que há sete meses tenta marcar uma audiência com a presidente do TRT14. O TRT14 afirma que a presidente mora na comarca e que a informação é inverídica.
A retomada das audiências presenciais não é uma questão menor. Advogados reclamam que não encontram os magistrados em seus gabinetes e não podem discutir os casos ou tratar de qualquer assunto urgente — precisam agendar essas reuniões com atendentes por meio de um sistema digital, enfrentando uma morosidade que não existia antes da pandemia. As dificuldades para tratar alguns tipos de crime e ouvir populações mais vulneráveis é óbvia: há milhões no país com difícil acesso à internet, vítimas de violência doméstica que dividem o teto com seus agressores, testemunhas que podem ler depoimentos escritos que nunca serão mostrados às câmeras e uma miríade de situações que dificultam a confiabilidade dos depoimentos. O uso dos sistemas virtuais é um avanço para a Justiça e abre a possibilidade de vários ganhos, mas não pode substituir totalmente o encontro físico entre o juiz e as partes. No momento em que a sociedade, mesmo que com dificuldade, tenta retomar a vida normal, o Judiciário — poder que usufrui dos maiores salários da máquina pública — não pode deixar de fazer a sua parte.
Colaboraram José Benedito da Silva e Sérgio Quintella
Publicado em VEJA de 24 de agosto de 2022, edição nº 2803