Na pandemia, o governo gasta energia tentando impor agenda conservadora
Com prioridade equivocada durante uma grave crise sanitária e econômica, Bolsonaro mostra sua estratégia em meio à disputa pelo comando do Congresso
Com 200 000 brasileiros mortos pela pandemia. Nenhuma estratégia definida para pôr em prática um plano nacional de vacinação. Uma economia com 14,1 milhões de desempregados e sem a perspectiva de que reformas estruturantes saiam do papel num futuro próximo. Em meio a esse conjunto gravíssimo de problemas, Jair Bolsonaro praticou um de seus esportes prediletos no litoral paulista durante as férias de fim de ano: provocou aglomerações desnecessárias na praia e desrespeitou as recomendações de prevenção contra o coronavírus. Ao voltar a Brasília, improvisou na entrada do Palácio da Alvorada: “Chefe, o Brasil está quebrado. Eu não consigo fazer nada”, disse ao ser questionado por um apoiador na terça 5, sobre o motivo de não ter cumprido a promessa de alterar a faixa de isenção do imposto de renda.
Em dimensão e complexidade, nenhum outro ocupante do Palácio do Planalto teve desafios do tamanho que se apresentam agora diante do capitão. Causa espanto e preocupação que, em meio a tantas dificuldades, o presidente e os parlamentares mais ligados ao governo tenham decidido que é hora de mergulhar de cabeça na defesa de uma agenda conservadora na moral, nos costumes e na segurança pública. Tentativas de restringir o aborto legal e instituir a chamada Escola sem Partido, entre outras iniciativas que fazem parte desse pacote de ideias deslocadas no tempo e espaço, são caras apenas aos apoiadores mais radicais do bolsonarismo, incluindo sua fiel base evangélica. Caso sejam aprovadas, isolarão ainda mais o Brasil do mundo civilizado. Se não bastasse, um esforço para colocar em discussão esses temas nos dias de hoje a pretexto de que eram promessas da última campanha presidencial representa tirar energia do que realmente importa: a superação das crises sanitária e econômica.
Essa miopia política desastrosa em termos de prioridades pode ser enxergada com clareza na atual disputa pelo comando da Câmara dos Deputados. Para apoiar Arthur Lira (PP-AL), a condição do Palácio do Planalto é que ele coloque em pauta o conjunto principal de temas da agenda conservadora. Expoente do Centrão, núcleo mais fisiológico que atua no Congresso, Lira enfrentará em fevereiro o deputado Baleia Rossi (MDB-SP), escolhido por Rodrigo Maia (DEM-RJ) para suceder a ele na chefia da Câmara (veja a reportagem na pág. 36). O emedebista ganhou o apoio da oposição ao prometer que não vai abrir espaço a projetos retrógrados, repetindo a estratégia de Maia. Mas Lira aposta no apoio de Bolsonaro e faz um aceno no sentido contrário: recebeu deputados do núcleo mais ideológico e pediu uma lista de projetos que consideram prioritários. Além de propostas que impõem mais restrições ao aborto e que cerceiam a liberdade do professor em sala de aula, foram listadas iniciativas que tratam da redução da maioridade penal, da ampliação do porte de armas e da liberação do homeschooling (educação dos filhos em casa).
Mesmo que esses projetos tenham poucas chances de aprovação, a estratégia dos conservadores radicais é colocá-los em votação, porque com isso eles poderiam inflamar o debate na Casa, ganhar visibilidade política e dar uma satisfação ao eleitorado. Parlamentares experientes dizem que o desempenho ruim dos candidatos ideológicos nos pleitos municipais acendeu um alerta entre os bolsonaristas. Eles se elegeram prometendo uma “revolução conservadora”, mas não conseguiram aprovar ainda nenhum projeto no Legislativo. Lira é conhecido por ser um deputado “cumpridor de palavra” e deu indícios em postagens nas redes sociais de que pretende destravar essa agenda caso seja eleito. “Nós dissemos ao Lira que precisamos de um parceiro. Maia foi um grande antagonista da pauta de costumes”, afirma Carlos Jordy (PSL-RJ).
O papel de Bolsonaro é manter a cobrança pela agenda e atuar como animador dos radicais. Na semana passada, criticou o Senado argentino por permitir o aborto nas catorze primeiras semanas de gestação e disse que, no que depender dele, isso não vai ocorrer no Brasil. Em dezembro, afirmou que tentará aprovar o excludente de ilicitude, que diminui as punições a policiais que matam em serviço, medida que já foi retirada pelos deputados do pacote anticrime em 2019. “Não são pautas que criam consensos, pelo contrário. Servem para manter o clima de confronto e de polarização crescente”, explica o cientista político Rodrigo Prando, da Universidade Mackenzie. Para alguns analistas, a agenda dos costumes terá um peso maior em 2022 do que em 2018 para Bolsonaro. Antes, ele se apoiou nos pilares do liberalismo, da antipolítica e do combate à corrupção, mas todos ruíram ao longo do governo. “Bolsonaro precisa manter a tropa mobilizada sem contar mais com essas outras frentes”, diz Eduardo Grin, professor de administração pública da FGV-SP.
Explorar pautas de caráter ideológico é uma muleta para políticos demagógicos e autoritários que tentam manter a popularidade e pautar o debate eleitoral a partir do clima bélico na sociedade. Bolsonaro tem afeição antiga pela agenda. Em quase três décadas, construiu a imagem de um deputado folclórico com propostas absurdas de cunho conservador — de 162 projetos de lei, porém, 113 foram arquivados e apenas dois foram transformados em lei. Desde aquela época, ele mostrava obsessão pelo armamento da população, sugerindo novas redações a artigos de leis que dispõem sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição. Também quis instituir o serviço militar obrigatório para os concluintes da rede de ensino público federal e propôs a realização de laqueadura e vasectomia para fins de planejamento familiar e controle de natalidade.
Na surpreendente trajetória que transformou o parlamentar folclórico em chefe da nação, a força do rebanho evangélico foi inegavelmente uma das chaves de sua vitória — e explica também a importância que o capitão dá hoje a alguns assuntos. Ele capitalizou como nenhum outro esse apoio e promoveu a maior mistura entre Estado e religião na história recente do país, explicitada pelo slogan de seu governo (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”). O rebanho só faz crescer. Estimativas mostram que os evangélicos serão maioria no país até 2030 (veja a reportagem na pág. 38). No Congresso, a chamada “bancada da Bíblia” conta hoje com cerca de 140 parlamentares (quase um terço da Câmara). Pesquisa feita pelo instituto americano Pew Research em dezoito países da América Latina, incluindo o Brasil, revela que os evangélicos tendem a ser mais rigorosos com questões morais do que os católicos. Autor do livro Neopentecostais, o professor de sociologia da USP Ricardo Mariano avalia que isso acontece porque lideranças evangélicas têm influência maior sobre os fiéis no plano religioso, moral e político de sua vida. Para ele, parte desse grupo ainda conferiu “base social” e “apelo emocional” ao movimento que se autointitula conservador nos costumes e liberal na economia.
A balbúrdia narrativa que coloca no mesmo balaio o lobby pró-armas, o recrudescimento penal e o fim da “ideologia de gênero” serve à defesa do que é entendido como “família”, um dos pilares do discurso bolsonarista. Para o antropólogo Roberto DaMatta, parte desse conceito traz resquícios da ideia de família do século XIX: patriarcal, religiosa e escravocrata. “A casa (ou a família) é o centro da sociabilidade onde você recebe as regras mais sólidas, tem um nome, é conhecido e está seguro. Já a rua é onde as relações da casa se desfazem e onde imperam o desconhecido, o medo”, diz. “Os legados de longo prazo da escravidão, das hierarquias sociais, da ala conservadora da Igreja Católica e do crescimento dramático dos cristãos evangélicos são a estrutura desse conservadorismo”, acrescenta James Green, diretor da Iniciativa Brasil na Brown University.
O avanço rumo ao retrocesso movido por grupos conservadores não é uma novidade histórica no Brasil. No contexto da Guerra Fria, diante do triunfo da Revolução Cubana e do surgimento de guerrilhas urbanas pela América Latina, milhares de pessoas foram às ruas do país protestar contra o comunismo ateu. As Marchas da Família com Deus e pela Liberdade promoveram o apoio de caráter popular que os militares necessitavam para dar em 1964 um golpe de Estado em João Goulart, introduzindo uma ditadura que durou 21 anos. “O conservadorismo político e social é marca registrada do país”, diz o historiador José Murilo de Carvalho. Um alvo frequente desse movimento é a Constituição promulgada após a democratização, em 1988. Hoje, a ideia ganha voz com o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), que voltou a defender uma assembleia para elaborar uma nova Carta Magna, sob a alegação de que a atual tem muitos direitos e poucos deveres e torna o país ingovernável. Mas as questões vão muito além da economia. “A Constituição consagrou ou abriu margens para a formalização de propostas avançadas por movimentos identitários que desagradam profundamente ao conservadorismo religioso. Não é estranho, assim, que volta e meia apareçam propostas de revisão”, afirma o historiador Daniel Aarão Reis, da Universidade Federal Fluminense.
Mesmo assim, ainda que não de forma linear, o saldo das últimas décadas demonstra que o Brasil tem avançado em causas progressistas, principalmente por meio do Supremo Tribunal Federal. No ano passado, por unanimidade, a Corte declarou inconstitucional uma lei de Novo Gama (GO) que vetava a discussão de “ideologia de gênero” nas escolas e derrubou a proibição de doação de sangue por homens homossexuais. “É tradição dos parlamentos serem lentos. E acaba a Corte Constitucional sendo chamada a decidir em conformidade com aquilo que está na Constituição. E a Constituição brasileira é progressista”, diz o ex-presidente do STF Carlos Velloso. O que o Supremo fez, segundo Velloso, foi adequar a Constituição à realidade do que ele chama de tempo presente. Foi assim em outras decisões anteriores, quando, em 2008, a Corte liberou pesquisas com células-tronco embrionárias e, três anos depois, reconheceu a união estável homoafetiva. Em 2012, ainda descriminalizou o aborto de anencéfalos e, em 2019, criminalizou a homofobia.
A despeito desses e de outros avanços, há alguns solavancos no meio do caminho em busca das luzes da civilização, provocadas de tempos em tempos por reações conservadoras. É o que ocorre neste momento. Grupos sociais que acusam uma fantasiosa perda de espaço acabaram capturados pelo reacionarismo personificado na figura de Bolsonaro. “Mudanças sociais recentes, como cotas em universidades públicas, reduziram privilégios das famílias de classe média e média alta brancas, que se voltaram para ideologias conservadoras que argumentam contra essas mudanças”, diz o brasilianista James Green. No Congresso, um grupo liderado pela deputada Bia Kicis (PSL-DF) e formado por parlamentares considerados mais radicais do que a bancada evangélica tenta recolher assinaturas para criar uma frente parlamentar conservadora e fazer avançar essas pautas. É legítimo que Bolsonaro e sua trupe tentem emplacar ideias que venderam na eleição. Mas é altamente questionável que essa seja a preeminência em um momento em que o Brasil afunda numa das maiores crises sanitárias e econômicas de sua história. Se governar é fazer escolhas, como diz a velha máxima da gestão pública, nunca o país se viu diante de tamanho equívoco na eleição de prioridades. O Brasil precisa urgentemente de luzes em meio a tempos tão sombrios. Um governo que governa, na acepção mais elevada do verbo, já seria um ótimo começo.
Publicado em VEJA de 13 de janeiro de 2021, edição nº 2720