Nascidos na pandemia: coronials, a geração que veio ao mundo após o vírus
Eles ainda não fizeram grandes passeios, mas podem ter nos pais um belo estímulo para dar os primeiros passos
PINTANDO O SETE
“Tive muitas dúvidas e medos na gravidez, mas aí ganhei este presente levado em plena pandemia, um privilégio. Claro que, para uma mãe numa situação tão diferente como esta, cada dia traz um desafio. Procuro estar o mais presente possível na vida do meu filho e brincar quanto der com ele.”
Titi Müller, 34 anos, e Benjamin, 10 meses
Quem vê um bebê nos seus primeiros meses de vida, ainda com sono longo e sem todos os movimentos que logo o tornarão um ser ultra-ativo, do qual os adultos não poderão desgrudar os olhos, não tem ideia do que se passa no interior de seu cérebro. Nessa fase, ocorrem ali 1 milhão de sinapses por segundo, uma ebulição cerebral que será valiosa por toda a vida. É justamente por isso que os estímulos mais simples se fazem tão valiosos nos primórdios da existência. Mas como provê-lo nestes tempos pandêmicos, quando o mundo lá fora está, por ora, com restrições a interações e passeios mais ambiciosos? Pais de todo o planeta se veem hoje às voltas com essa questão-chave que, mesmo com a natalidade em baixa, bate à porta de 183 milhões de famílias — 3 milhões delas no Brasil. Trata-se da leva que nasceu depois da eclosão do novo coronavírus, do já longínquo fim de 2019 até agora, uma geração que estreia no planeta em condições bem distintas das de suas antecessoras e já tem até nome: coronials.
Embora a rotina mais reclusa imponha privações, há terreno de sobra para incentivar o desenvolvimento dos novos bebês dentro de casa — tarefa que, postas as circunstâncias, recai sobre os pais. A boa notícia é que o esforço em mantê-los alertas pode trazer bons ventos. “A dedicação do pai e da mãe para estabelecer comunicação constante com o filho pequeno deve ser suficiente para que seu cérebro compense o tempo perdido distante do mundo exterior”, diz David Lewkowicz, professor do Centro de Estudo da Criança da Universidade Yale, nos Estados Unidos. Desde que deixou a maternidade nos braços de sua mãe, o fofíssimo Kalue, de 9 meses, se alterna entre o lar e os jardins do condomínio onde mora, em São Paulo. Viu os avós poucas vezes e recebeu uma ou duas visitas de parentes. Quando vai ao pediatra, olha com avidez para o entorno. “Se cruzamos com outra criança, percebo em seu rostinho a curiosidade de quem esbarra com algo diferente”, diz a mãe, a fonoaudióloga Pierina Prado, 34 anos.
A ciência que se dedica a compreender o desenvolvimento desses mini-humanos já concluiu que, nos primeiros meses, a socialização com outras crianças não é primordial. O que mais conta aí é atender a necessidades básicas e dar combustível para que tenham os sentidos aguçados à base de boas doses de afeto. Não há nada de mirabolante nos manuais amplamente aceitos, que agora precisaram ser ajustados aos dias de isolamento. De acordo com uma cartilha da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, vale até ir à janela e apontar objetos e pessoas indo e vindo e brincar de fazer expressões num momento em que elas andam escondidas pelas máscaras, pois a criança aprende imitando (veja o quadro). “Dá para produzir estímulos visuais, motores, auditivos de modo bem simples”, afirma o psicólogo Lino de Macedo, do Comitê Científico do Núcleo Ciência pela Infância. Uma tentação comum nestes tempos é pôr a criança diante da tela da TV ou do smartphone, o que, em excesso, é contraindicado: a tecnologia usada como muleta pode até frear o avanço da linguagem e afetar o desenvolvimento físico.
CURIOSIDADE A TODA
“Saímos às vezes para ir ao pediatra ou andar de carrinho no condomínio. Percebo que, quando cruzamos com outra criança, o rostinho do meu filho se acende. Como passamos muito tempo em casa, é tudo novidade. Até para ter contato com os avós o jeito é recorrer à videochamada.”
Pierina Prado, 34 anos, o marido, Daniel Oliveira, 39, e Kalue, 9 meses
Há muitos estudos em andamento sobre os efeitos da pandemia na geração coronial, alguns já com resultados preliminares. Um levantamento conduzido pela Universidade Oxford Brookes, no Reino Unido, com pais de crianças entre 8 e 36 meses, apontou que muitas têm demonstrado mais medo de estranhos, timidez e maior dependência de quem cuida delas. Também associa a diminuição das atividades ao ar livre a um sono irregular. Para romper com esse ciclo desencadeado pela falta de contato com humanos fora de casa, os estudiosos dizem que há evidências de que as videochamadas, tão adotadas no home office, funcionam também para pôr a mente infantil para trabalhar. A blogueira Eduarda França, 30 anos, que vive em Porto Alegre, costuma conectar via Zoom as filhas Isabella, de 7 meses, e Manuela, de 4, com a banda da família que está em Florianópolis. “Até minha menor reconhece a voz dos avós e sorri na frente do computador”, conta a mãe.
Uma parcela desses bebês que nascem em plena pandemia enfrenta o risco de assimilar substâncias presentes na barriga da mãe ligadas a stress e outros transtornos que surgem enquanto o vírus ainda resiste (veja a situação no Brasil no quadro da pág. ao lado). Uma pesquisa da Universidade de Calgary, no Canadá, com 11 000 bebês nascidos entre 2020 e 2021, identificou nas gestantes níveis de ansiedade e depressão até quatro vezes mais elevados do que antes da epidemia. Nesses casos, o corpo adulto produz hormônios que podem passar ao feto. Mas isso não é definidor de nada. “Desde que recebam carinho e estímulos, os bebês têm tudo para crescer saudáveis e bem desenvolvidos”, diz o psicólogo Gerald Giesbrecht, envolvido no estudo canadense.
SOPRO DE LIBERDADE
“Desço ao jardim do prédio quando não tem ninguém por lá. Assim, a Manu bota a energia para fora e a Bella toma um sol e descobre a grama. É um bom respiro.”
Eduarda, 30 anos, o marido, Gerson Fraga, 28, e as filhas Isabella, 7 meses, e Manuela, 4 anos
Mães de coronials atravessaram uma gravidez cercada de dúvidas, que aos poucos a ciência vai desanuviando. “Vivi momentos de muita angústia e até considerei fazer o parto em casa para não precisar ir ao hospital”, lembra a apresentadora paulista Titi Müller, 34 anos, que deu à luz a Benjamin em junho passado. O menininho de feições levadas ainda não conheceu o avô, o que acontecerá tão logo ele tome a segunda dose da vacina. Em seu aniversário de 1 ano, o esperado encontro vai se consumar, algo que certamente se depositará em sua memória afetiva. “Se os pais se mantiverem sensíveis e conseguirem dar aos filhos uma boa vida, mesmo entre quatro paredes, as consequências destes tempos sombrios tendem a ser inexistentes”, pondera o médico e especialista do Centro de Desenvolvimento da Criança da Universidade Harvard, Nathan Fox. Quem sabe não se origina daí uma geração mais resiliente e preparada para o que der e vier.
Publicado em VEJA de 5 de maio de 2021, edição nº 2736