A aposentada Maria Cardoso, de 69 anos, guarda desde o início de 2018 um viscoso líquido avermelhado dentro de uma garrafa de refrigerante. “Tem cor de sangue, mas é essa a água que a gente bebia”, lembra. O material foi retirado de um poço artesiano cavado ao lado de um igarapé que margeia a casa da família, localizada em Barcarena, município do Pará com 120 000 habitantes. Em fevereiro do ano passado, uma forte chuva inundou boa parte da região durante a madrugada. Ao amanhecer, os moradores foram surpreendidos com o novo tom que coloriu as bacias da área. Na sequência, peixes começaram a morrer e a água do local acabou sendo considerada imprópria para consumo. A pedido do Ministério Público, Maria estocou alguns frascos com o material resultante do episódio. Era o início de um caso que segue inconcluso, mas que revela uma outra faceta da destruição ambiental na Amazônia.
A cidade de Barcarena abriga uma das maiores produtoras do mundo de alumina, a matéria-prima do alumínio. A empresa Hydro Alunorte atua na região desde 2011, emprega 6 000 funcionários, lucrou 623 milhões de reais em 2017 e tem como um dos principais acionistas o governo norueguês. Vale lembrar, é o mesmo país europeu que recentemente entrou no centro da polêmica do desmatamento brasileiro após anunciar que suspenderia o repasse de 133 milhões de reais que seriam destinados para o Fundo Amazônia, verba direcionada a projetos de preservação da floresta, por discordar das políticas ambientais do governo Bolsonaro. Ao mesmo tempo, a Noruega lucra com a Hydro, que é acusada de provocar um dos maiores desastres ambientais da região.
De acordo com o Ministério Público, a empresa recorria a um duto clandestino para escoar seus rejeitos tóxicos. O material estaria sendo despejado no meio ambiente e poluindo as bacias que eram usadas como fonte de água potável pela população ribeirinha da região amazônica. Um dia após o acidente, pesquisadores coletaram amostras de águas superficiais e subterrâneas. As análises constataram a presença de elevadas taxas de alumínio e de outras substâncias associadas aos resíduos gerados pela refinaria norueguesa. Um estudo ainda inédito realizado pelo Instituto Evandro Chagas, vinculado ao Ministério da Saúde, aponta um altíssimo índice de contaminação dos moradores que vivem nas proximidades da Hydro — a quantidade de chumbo encontrada no sangue deles é nove vezes maior que a existente no daqueles que vivem em regiões mais distantes da refinaria.
A presença de metais pesados no organismo causa graves alterações no sistema nervoso central e nos rins. “Pode haver comprometimento do aprendizado, além de tremores e de convulsões”, explica o toxicologista Flávio Zambrone. Passado um ano e meio, porém, os moradores atingidos nem sequer receberam o resultado de seus exames. Dona Maria, a senhora que até hoje guarda a água avermelhada, foi submetida a coletas de sangue e de amostras de seu cabelo. “Na época meus peixes e minhas galinhas morreram, eu senti dores no estômago e coceiras. Mas ainda não sei o que aconteceu comigo”, conta. Há um imbróglio jurídico sobre quem deve analisar o material biológico recolhido. A Hydro não reconhece o trabalho do Instituto Evandro Chagas e o Ministério Público não aceita uma perícia contratada por ela. “Houve má-fé. A empresa usou um duto de maneira irregular para despejos deliberados e propositais”, acusa o procurador Ricardo Negrini.
Em um acordo com o Ministério Público, a Hydro se comprometeu a fornecer água aos moradores da região, depositou 250 milhões de reais em juízo como garantia, reservou outros 65 milhões para o pagamento de indenizações aos moradores e ainda aceitou desembolsar 33 milhões em multas. Após o acidente, o CEO da companhia foi afastado e mudanças na estrutura interna implicaram gastos de 600 milhões de reais. Apesar disso, a Hydro nega que tenha havido contaminação e reforça sua atuação como indústria limpa e de alta tecnologia. “Isso está comprovado nas mais de 120 auditorias que fizemos”, afirma o porta-voz da empresa, Carlos Neves. Já o governo norueguês, ágil em apontar os erros brasileiros, foi acionado por meio da embaixada e não comentou o caso até o fechamento desta edição.
Publicado em VEJA de 4 de setembro de 2019, edição nº 2650