Boas evidências indicam a possibilidade de o Brasil ser o próximo na fila do boom de inovação em tecnologia. Somente em 2018, o país recebeu cerca de 1,3 bilhão de dólares em investimentos de venture capital (capital de risco), o que equivale a quase 70% do volume investido na América Latina. Há poucas semanas, o gigante japonês SoftBank anunciou a criação de um fundo de 5 bilhões de dólares para investir em startups de tecnologia na região. No último ano, cinco startups brasileiras foram classificadas como “unicórnios” — assim chamadas as que são avaliadas em mais de 1 bilhão de dólares —, entre elas a 99 e a iFood, em setores como transporte, alimentação e finanças, e a expectativa é que sejam criados mais unicórnios em 2019.
Se olharmos para a trajetória de mercados como China, Índia e Indonésia, veremos que o Brasil apresenta características similares para que um cenário de inovação floresça: talento, engenharia de ponta e um consumidor de cabeça aberta que adota rapidamente novas tecnologias. Isso se reflete na força da nossa economia no panorama global: hoje, estamos entre as dez maiores e o PIB deve voltar a crescer na casa dos 2% neste ano, de acordo com dados divulgados no início de março pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
No entanto, ocupamos a 72ª posição no ranking de competitividade do Fórum Econômico Mundial. A falta de infraestrutura e alcance digital impede um em cada três brasileiros de levar uma vida conectada, ou seja, um terço dos brasileiros hoje não contribui para a nova economia nem dela participa. Dois terços das empresas abertas no país fecham suas portas depois de cinco anos, segundo dados da consultoria McKinsey. Para abrir uma empresa, o empreendedor brasileiro enfrenta dificuldades práticas, como a complexidade da legislação — inclusive com leis trabalhistas e tributárias onerosas para o empresário —, a burocracia e vias a que apenas alguns têm acesso.
Há alguns anos, acompanhei a abertura da filial da chinesa Xiaomi no país. Em pouco tempo, tínhamos 35 funcionários e parceria com gigantes do varejo on-line no Brasil. Mas não ficamos nem um ano e meio aqui. O modelo de negócio, que tinha funcionado tão bem na China, Índia, Indonésia e Malásia — nações onde a empresa chegou a ser a primeira no ranking de vendas de smartphones —, não vingou no Brasil, impactado por um modelo tributário muito mais complexo e um processo de aprovação regulatória extremamente longo, entre outros fatores. O país está longe de ser um mercado que ofereça boas condições para o empreendedorismo até mesmo no caso de grandes empresas.
Em conversas com investidores e empresários no Vale do Silício, sempre me perguntam a mesma coisa: como destravar esse Brasil, para que ele possa ocupar o papel que deveria ter de protagonista no cenário de inovação mundial?
Em primeiro lugar, é crucial que a máquina pública busque mais eficiência e gere confiança nos investidores. É o caminho para atrair ainda mais investimentos dos grandes venture capitalists. Um setor público profissionalizado é inevitavelmente a plataforma que criará condições favoráveis ao empreendedorismo de forma geral. O investimento do governo na área de serviços digitais, atraindo novas lideranças e adotando políticas que têm como objetivo desburocratizar o Estado, constitui um passo decisivo para fomentar a inovação no Brasil.
Em segundo lugar, a prioridade para grandes empresas do setor privado é continuar a investir não apenas em inovação nos seus respectivos negócios como também na construção de plataformas que estimulem a criação de ecossistemas integrados de startups de tecnologia. Precisamos que grandes empresas banquem grandes ideias para transformar a dinâmica dos mercados e estimular o empreendedorismo.
“O país tem características similares às de China, Índia e Indonésia para que um cenário de inovação floresça”
Quando observamos o cenário de empreendedorismo no Brasil, vemos que levamos uma grande vantagem: sobra talento. Nossas fintechs — como são chamadas as startups de tecnologia focadas no setor financeiro — são benchmark para o resto do mundo e abrangem uma série de serviços financeiros, como a Nubank e a Stone, entre outras, associando-se muitas vezes a empresas tradicionais para transformar de modo decisivo o mercado.
O passado de luta contra a inflação talvez explique tantas boas referências na área de finanças. Mas como, então, fazer com que elas proliferem também em setores estruturais da sociedade como educação, saúde e administração pública? Uma alternativa pode vir de mais parcerias entre a iniciativa privada e o governo, com empreendedores que possam trazer soluções a partes da cadeia produtiva. Um bom exemplo global dessa intersecção é o advento do open banking na Europa, já na pauta do Banco Central brasileiro, com o objetivo de integrar startups a instituições financeiras em busca de transparência, competitividade e serviços bem mais inteligentes.
Nesse contexto, o modelo do Vale do Silício pode ajudar. Tenho encontrado muita gente que diz ter vontade de voltar para o Brasil para transformar nosso país. Faltava descobrir maneiras de conectar essas pessoas, com foco nos desdobramentos de longo prazo. Pensando nisso, e com o objetivo amplo e ambicioso de elevar a competitividade e a relevância global do Brasil por meio de tecnologia e inovação, estudantes brasileiros da Universidade Stanford organizaram-se para criar um movimento intelectual que visa a construir uma ponte perene entre o país e o coração do Vale do Silício. O primeiro produto desse movimento é a conferência Brazil at Silicon Valley.
O evento, que ocorre a partir de 8 de abril na Califórnia, vai conectar empreendedores, empresários, investidores, estudantes e tomadores de decisão em geral, que em sua grande maioria vêm do Brasil e poderão voltar para o país para tornar realidade temas essenciais para a evolução da nossa competitividade em quatro setores: educação, saúde, finanças e administração pública. Durante dois dias, cerca de 700 pessoas discutirão todo o ecossistema de inovação e iniciativas que têm ajudado a transformar o mundo. Possibilidades de digitalizar a saúde vão ser abordadas, assim como cases de GovTech, com exemplos de como conciliar máquina pública e inovação dinâmica, em algo tão comum entre startups. O Brasil também vai subir ao palco para mostrar o que deu certo nas fintechs e falar do futuro das transações financeiras.
Mais importante que debater esses temas será de fato criar mecanismos permanentes para que essa ponte entre o Brasil e referências globais de inovação e tecnologia se mantenha ativa. Em uma das sessões da conferência, Jorge Paulo Lemann entrevistará Scott Cook — fundador da Intuit, empresa de 65 bilhões de dólares que inova consistentemente há mais de trinta anos — sobre como incentivar experimentação em grandes organizações. Eis um exemplo claro de como um dos empresários mais respeitados do Brasil já abraçou o tema.
Precisamos tornar essa discussão ampla, atingindo cada vez mais tomadores de decisão (atuais e futuros) no país. Por meio de debates críticos e práticos, teremos oportunidade de contribuir significativamente para reafirmar a competitividade que deveria ser nossa por natureza. E assim fazer com que o Brasil entre de vez para o time das referências da inovação.
* Vice-presidente do Facebook, Hugo Barra está à frente da Oculus (empresa de realidade virtual). É ex-vice-presidente do Google e da Xiaomi e apoiador da conferência Brazil at Silicon Valley, que ocorre em 8 e 9 de abril na Califórnia (EUA)
Publicado em VEJA de 10 de abril de 2019, edição nº 2629
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