O Carnaval está na minha alma, diz a rainha de bateria Raíssa de Oliveira
Integrante da Beija-Flor há dezoito anos, a moça, de 30 anos, fala do vazio dessa época do ano sem festa
Nunca imaginei que pudesse existir um fevereiro sem Carnaval. Ele é parte da minha existência. Me acompanha o ano inteiro e ajuda a definir quem eu sou, desde muito cedo. O Carnaval está na minha alma. Não ver os ensaios que lotam a escola de samba nem ter a perspectiva do grande desfile traz vazio e silêncio. Nilópolis, onde fica a Beija-Flor, é hoje um lugar irreconhecível, sem aquela alegria típica desta época do ano. Se soubesse que o maior espetáculo da Terra seria cancelado, teria aproveitado ainda mais cada segundo da folia de 2020. Volto a ela o tempo todo na memória. Fico martelando na cabeça: “Por que deixei a bateria passar tão rápido?”. Nestes dias, olho para a Marquês de Sapucaí, a passarela do samba no Rio de Janeiro, e não vejo as obras que todo ano a fazem majestosa. Aí penso: “Será que esse palco tão especial voltará a brilhar?”. Sei que vai. O momento agora, porém, é de se preocupar em preservar vidas. Ninguém quer uma Quarta-Feira de Cinzas sombria. Melhor ficar sem ela. Carnaval só vale ser for pura festa.
Sou rainha de bateria da Beija-Flor há exatos dezoito anos. Tinha 12 quando estreei, uma criança. Meu sonho sempre foi ser passista. Nos dias de desfile, eu pegava os saltos da minha mãe e passava a madrugada inteira acordada esperando a minha azul e branco cruzar a Avenida. O amor pelo Carnaval veio no meu DNA, mas foi por meio de uma professora de dança que ingressei na ala de passistas mirins da escola. Em 2003, logo no ano seguinte ao meu primeiro desfile, fui selecionada entre 120 meninas e meninos para participar de um concurso de minipassistas na Rede Globo. Venci e me tornei rainha de bateria da Beija-Flor. Em toda a história da Marquês de Sapucaí, ninguém ocupou mais tempo este posto. Era tão novinha quando comecei que não tinha ideia de quanto ele é almejado. Tudo o que eu queria era sambar e brincar. Ainda hoje preservo essa alegria dos tempos em que não tinha consciência da tamanha responsabilidade que carrego.
O que vemos na Avenida é sempre o lado glamoroso da festa. Ela envolve muito suor e conta com um monte de pessoas da comunidade que dependem dela para sobreviver. Neste momento, aliás, não estão só sem a folia, mas também sem trabalho. Apesar de vivermos em tempos modernos, com tantos avanços em nossa sociedade, o Carnaval ainda é marginalizado. Eu já sofri muito preconceito por ser uma mulher do samba. Até hoje, há quem ache que uma sambista não sabe se portar, não tem família nem estudo. Preciso explicar diversas vezes que aquilo que faço é o meu ofício, que a rainha de bateria é um personagem que interpreto. Além de preconceito, sofro assédio, como muitas outras que batalham na Marquês de Sapucaí. É comum os homens se aproximarem querendo nos tocar. Às vezes, aparecem mulheres pedindo para eu dar uma voltinha para filmar meu bumbum, como se fosse um objeto. Infelizmente, uma parte das passistas tem vergonha e medo de tocar no assunto. É ainda um tabu.
Com tudo isso, sei a imensa oportunidade que é ser uma rainha de bateria. Há um momento em que o Sambódromo fica esperando eu passar e me sinto plena. Aquele é o meu palco. Já vivi de tudo um pouco ali. Em 2019, por exemplo, desfilei grávida de dois meses. Ninguém reparou. Morri de medo de não conseguir estar com o corpo em forma para a folia de 2020. Foi dureza, mas deu certo. A pandemia tornou este ano diferente de qualquer outro. Meu marido, minha filha e eu vestiremos nossas fantasias em casa, mas ficaremos bem longe das aglomerações, torcendo para que a vacina chegue logo para todos — e que, em 2022, a passarela do samba volte a resplandecer.
Raíssa de Oliveira em depoimento dado a Thais Gesteira
Publicado em VEJA de 17 de fevereiro de 2021, edição nº 2725