“Por favor, me ajuda! Preciso de uma transferência urgente”, disparou em mensagem de WhatsApp o pintor Jorge Machado, 61 anos, ao ser procurado pela reportagem de VEJA. Ele fora indicado como um dos vários acometidos pela Covid-19 na Rocinha, a maior favela da América Latina, incrustada na Zona Sul do Rio de Janeiro e agora um triste cartão-postal do avanço da pandemia em bolsões de pobreza. Machado se encontrava na Unidade de Pronto Atendimento (UPA), desesperado para ser conduzido a um leito hospitalar. “Já estou aqui há uma semana. Tenho de ir para qualquer hospital, preciso ficar no oxigênio”, explicava. Depois, sumiu — a ponto de nem sua mulher, a empregada doméstica Maria Helena Conceição, saber de seu paradeiro, revelado apenas dois dias mais tarde. Ele estava em uma UTI, intubado e incomunicável, e viria a morrer naquela mesma semana.
Quando o novo coronavírus começou a se alastrar pela Ásia, para depois mostrar sua força destrutiva na Europa e nos Estados Unidos, o meio científico fez soar um alarme que derramava atenção sobre a banda mais vulnerável do planeta. Como seria na hora em que o inimigo invisível aterrissasse nos aglomerados de casebres plantados em meio à escassez — até mesmo de água para manter as mãos higienizadas e livres do vírus? Este capítulo da pandemia está sendo escrito à medida que as 6 300 favelas do Brasil registram curvas crescentes — e, se nada for feito, galopantes — de infectados. Quase 12 milhões de brasileiros vivem em favelas, 70 000 deles encarapitados na Rocinha. “A alta densidade demográfica desses lugares aliada à falta de serviços básicos os torna terreno fértil para a proliferação do coronavírus”, afirma o demógrafo e pesquisador José Eustáquio Alves.
Lavar as mãos como?
Mirabel dos Santos, 60 anos
No beco em que mora com a sogra, de 77 anos, e mais duas famílias, situado na parte alta da Rocinha, a auxiliar de limpeza desempregada conta que falta água constantemente, às vezes três dias na semana. De todos os moradores, só uma vizinha e três crianças não tiveram sintomas de Covid-19. “Aqui ninguém foi testado”, diz ela (de pé, à esq.).
Como ocorre em todo o Brasil, as favelas também se ressentem da falta de dados sobre a pandemia, só que de forma mais gritante, uma vez que quase ninguém — mesmo aqueles que apresentam o roteiro completo dos sintomas — tem acesso ao teste para confirmar a doença. Por isso, até a quinta-feira 30 havia 53 infectados e seis mortos na Rocinha, enquanto o quadro pintado por especialistas e por quem acompanha o drama nos becos e vielas era bem mais grave. “Nosso cálculo indica uma quantidade quinze vezes maior que os números oficiais (cerca de 800 contaminados)”, estima Domingos Alves, chefe do Laboratório de Inteligência em Saúde da Universidade de São Paulo. Uma outra aferição feita aleatoriamente ali em um grupo de cinquenta moradores mostrou que 35% testaram positivo. “Tem muita gente morrendo, e isso não aparece. Só de casos que chegaram a mim nos últimos dias foram 22”, afirma Wallace Pereira, presidente da associação de moradores da favela. A reportagem foi informada de outros dois óbitos na mesma quinta-feira.
Estampado em uma faixa pendurada na entrada da Rocinha, o aviso “Fique dentro de casa” tem efeito meramente decorativo. Lá a quarentena não está valendo, e não se vê sinal do poder público para frear o comércio, quase todo aberto com o aval das autoridades locais — no caso, as do tráfico, que historicamente dão as cartas nesse naco da cidade. No começo, houve até certo grau de isolamento, por ordem dos próprios bandidos. Não mais: eles foram avistados pela reportagem vendendo drogas à vontade debaixo do sol. As ruas estavam coalhadas de gente e formavam-se ruidosas aglomerações nos bares. Festas e forrós embalam a noite como se uma pandemia não assolasse o planeta. “Parece que as pessoas aqui não entenderam o horror que é essa doença”, desabafa Maria Helena Conceição, a viúva de Jorge, aquele que pediu socorro pelo celular.
Questões de ordem prática pesam decisivamente para que moradores da favela driblem o confinamento — inclusive aqueles sob fortes suspeitas de ter contraído Covid-19. A justificativa: precisar trabalhar e resolver pendências inadiáveis do dia a dia. “Não tenho quem me ajude. Tinha de pegar o auxílio-alimentação dado pela escola da minha filha e comprar comida”, diz a cabeleireira Débora Cândida da Silva, 31 anos, ao lado de Maria Regina, de 4. Mesmo com febre, tosse, dor de garganta e a “cabeça estourando”, Débora desobedeceu à ordem médica de permanecer em casa por duas semanas. O vírus está tão presente que as pessoas conseguem traçar mentalmente a cadeia do contágio. Débora acredita ter pego a doença do vendedor de peixes Reginaldo de Souza, 78 anos, que também penou. “Estava com tanta falta de ar que, na emergência, pensei: ‘Agora sei como as pessoas estão morrendo’”, conta.
Do hospital para a rua
Reginaldo de Souza, 78 anos
Quatro dias depois de deixar o hospital, o vendedor de peixes circulava normalmente pela favela, conversando com conhecidos. Ele passou seis dias internado com falta de ar, saiu com ordem de ficar duas semanas em casa e mostra a cartela do antibiótico que ainda está tomando. “Disseram que eu tive coronavírus”, relata, despreocupado.
Como o Sars-CoV-2 custou a desembarcar em lares brasileiros mais pobres — ele atingiu primeiro as classes altas, infectadas em viagens ao exterior —, só agora o sistema de saúde público está sendo testado para valer. A UPA da Rocinha anda com a sala vermelha, a da reanimação, cheia (enquanto na unidade de pronto atendimento do Complexo do Alemão corpos enrolados em lençol aguardavam para ser levados para algum cemitério da cidade). Como em outras capitais, as unidades de terapia intensiva no Rio estão abarrotadas, com 97% de ocupação (leia reportagem na pág. 74). Em um cenário assim, a cartilha da prevenção se impõe como questão de sobrevivência — mas a pobreza atrapalha. Um levantamento nessas comunidades mostra que metade dos moradores não tem nem acesso a saneamento básico. Na Rocinha, há vinte valas de esgoto a céu aberto e falta água nos pontos elevados do morro.
Sem tempo para parar
Débora da Silva, 31 anos
No posto de saúde aonde a cabeleireira foi três vezes, “com a cabeça estourando”, recebeu o diagnóstico de suspeita de Covid-19 e a orientação de ficar em casa, para não contaminar outras pessoas. Em vez disso, passou no colégio da filha Maria Regina, 4, e foi ao mercado. Na parada para lavar as mãos em uma pia pública da Rocinha, justificou-se: “Não tenho quem me ajude”.
A indignação da auxiliar de limpeza (agora desempregada) Mirabel dos Santos, 60 anos, é compreensível. “Falam para lavar as mãos o tempo todo, mas como faço aqui?”, questionava ela, que passa até três dias sem uma gota na torneira. A recomendação de distanciamento social também não resiste ao adensamento da favela. Maribel reside em um barraco colado aos de duas famílias, amontoados em um beco sombrio onde não entra sol e se respira mofo. Dos nove habitantes, cinco estão com sintomas de Covid-19. A camareira Antônia Dark da Silva, 47 anos, teve febre, tosse, dor no corpo e perda de paladar. “Não fui à UPA. Se a gente não está desfalecendo, mandam de volta para casa. O que nos resta é rezar para não morrer”, diz. Que sirva de alerta para quem tem a caneta na mão.
Publicado em VEJA de 6 de maio de 2020, edição nº 2685