O difícil recomeço dos afegãos que não param de chegar a Guarulhos
Alguns passam semanas sobre o chão frio do aeroporto sonhando com uma vida nova
Maior aeroporto do país, Guarulhos, em São Paulo, registrou no ano passado mais de 30 milhões de passageiros apinhados em extensas filas, uma colmeia de gente por vezes caótica. Nada que se compare, porém, ao drama humano que se desenrola em um canto escondido num mezanino da zona de partidas do Terminal 2. Ao lado do Posto de Atendimento ao Migrante, uma multidão de homens, mulheres e crianças vindos do Afeganistão montou um acampamento improvisado, usando cobertores para delimitar o espaço onde famílias aguardam, sobre colchonetes que mal as protegem do contato com o chão, o próximo passo de sua jornada na terra desconhecida. Garrafas d’água e roupas ficam espalhadas no saguão.
A situação, que se arrasta há quase dois anos, quando milhares de afegãos debandaram de seu país com o avanço do grupo fundamentalista Talibã, havia sido equacionada. Mas, com o recente cerco às liberdades individuais apertando na nação do Oriente Médio, uma nova onda de pessoas em busca de um horizonte melhor voltou a inundar os corredores do concorrido aeroporto.
Nos últimos dias, a reportagem de VEJA foi conhecer a realidade desses que abandonaram casa, emprego, universidade e os pertences de uma vida por se verem perseguidos pelo autoritário regime que se instalou na capital, Cabul, ou por falta de perspectiva mesmo — dois conhecidos motores para os deslocamentos mundo afora. Antes de pisar no Brasil, esse contingente cruza a fronteira de seu país a pé ou de carro. Na maioria das vezes, finca base nos vizinhos Irã ou Paquistão, onde uma parcela acaba vindo a morar, enquanto a outra tenta sair. Essa procura órgãos diplomáticos brasileiros atrás de um visto humanitário, documento que atrai cada vez mais afegãos. É o boca a boca que os faz saber que têm tal opção, a princípio improvável, dada a distância física e cultural que separa os dois países.
Entre os 91 donos de nacionalidade afegã espalhados por Guarulhos, na sexta-feira 18, Sayed Sultan, 44 anos e pai de seis filhos, é um dos que relatam ter voado ao Brasil porque, como militar, trabalhava para os americanos, o que hoje leva à sentença de morte no Afeganistão. Há duas semanas, ele espera um aceno das autoridades locais para ser acomodado em um dos abrigos para refugiados em São Paulo, alguns voltados exclusivamente para esses imigrantes que não param de chegar. Diante de tamanho afluxo, o período de incerteza no aeroporto pode durar semanas. “Quem quer deixar tudo para trás e ficar nessa situação? Mas foi necessário”, resigna-se Sayed.
O Brasil já concedeu 12 300 vistos de acolhida humanitária — o mesmo que, em outros momentos, foi dado maciçamente a venezuelanos, haitianos e até sírios. Desses, 6 200 ingressaram em solo brasileiro, enquanto os demais ainda juntam dinheiro para a viagem ou estão na expectativa de um parente obter o visto para que todos embarquem no mesmo avião.
A atabalhoada saída do exército americano do Afeganistão, que havia se estabelecido lá duas décadas antes, em meio à guerra ao terror desencadeada pelo governo George W. Bush pós-atentados de 11 de setembro, produziu cenas de desespero humano que certamente ingressarão nos livros de história. As pessoas disputavam lugar em aviões que, de tão lotados, mais pareciam ônibus no horário do rush. Muita gente ficou para trás, entre eles Ali Hosseini, 49 anos, ex-funcionário do Ministério da Educação na administração que viria a ser substituída pelo Talibã. Logo após o caos em Cabul, naquele agosto de 2021, Ali, a esposa, Najiba, mais três filhos fizeram a rota para o Irã. Permaneceram lá por um ano e meio, à espera do visto brasileiro. Na semana passada, enfim chegaram a Guarulhos. “Tínhamos uma vida boa que se foi. Agora, é olhar para a frente”, desabafa Ali. “Ao menos, pela primeira vez em muito tempo não temos mais medo”, arremata Sayed Sultan, seu colega de quarentena forçada no aeroporto.
Aqueles corredores são apenas a primeira parada de um duro recomeço, que exige de quem imigra elevada capacidade de adaptação. Do acampamento em Guarulhos, os afegãos são encaminhados a um dos onze abrigos em São Paulo de estadias de um mês. São ajudados então a regularizar sua situação na Polícia Federal, cadastram-se nos sistemas públicos de saúde e de educação e recebem aulas de português. Só depois são levados a centros de acolhimento nos quais podem ficar até um ano e onde são orientados na busca por emprego. “Não é fácil. Muitos são bem formados e precisam se colocar fora de sua área de atuação”, explica Vanessa Pimenta, coordenadora da casa Todos Irmãos, na cidade de Guarulhos.
Segundo o Acnur, agência de refugiados da ONU, a metade dos recém-chegados, embora donos de diplomas universitários, inicialmente assumem postos menos qualificados na indústria agropecuária. Enquanto se estabilizam, o Acnur fornece uma bolsa de 600 reais a cada um. Grávida de oito meses, Mursal Muradi, 21 anos, diz que a rede de apoio, que mescla programas do Estado com o de organizações internacionais, é vital, mas ela ainda se vê distante do dia em que fará parte da sociedade, um degrau que leva tempo para ser galgado. “Fugimos por medo de criar nossa filha no Afeganistão. Eles começaram a tosar a liberdade das mulheres e perdi meu emprego”, relata a jovem, que diz: “Só quero uma vida normal”.
A debandada de afegãos configura uma das maiores ondas migratórias da história recente. O conflito que mais produziu refugiados no século XXI foi a guerra da Síria — 6,6 milhões de pessoas no curso de uma década. O flagelo econômico na Venezuela, por sua vez, expeliu pouco mais de 6 milhões (260 000 dos quais aportaram no Brasil). Mais de 2 milhões de afegãos já haviam deixado seu país antes do retorno do regime talibã. Desde então, somou-se a eles outro 1,6 milhão, e a estatística cresce. As garras autoritárias do grupo fundamentalista aprofundaram a pobreza — de acordo com a ONU, 97% da população caminha na linha da precariedade e 700 000 pessoas perderam o emprego, a maioria mulheres. Hoje, o Afeganistão é o único país onde elas são proibidas de estudar e exercer variadas profissões. Em represália, Estados Unidos e aliados do Ocidente isolaram sua economia, cortando repasses que outrora respondiam por 75% do orçamento do governo. “Evidentemente que o Talibã merece status de pária, mas a população vem pagando um preço alto”, avalia Paulo Hilu, coordenador do Núcleo de Estudos do Oriente Médio da UFF.
A chegada dos afegãos ao Brasil se dá num momento em que nunca tanta gente deixou seu país atrás de mais liberdade e oportunidades. Um relatório da ONU enfatiza que o número de deslocamentos no planeta atingiu o recorde de 108,4 milhões em 2022. Obstáculos diversos aparecem no trajeto, que majoritariamente mira a Europa e os Estados Unidos como destino final. Muitos, porém, dão de cara com o paredão de guardas que os contêm nesses países. Há ainda os que não resistem a jornadas em condições subumanas, como as dramáticas travessias no Mediterrâneo.
O Brasil, nesse contexto, surge como opção, sobretudo para os vizinhos sul-americanos. Foi após a nova Lei de Imigração, de 2017, que o país se inseriu mais fortemente no mapa global da imigração. “O texto, guiado por princípios de direitos humanos, é modelo, embora ainda haja claras lacunas na logística e na infraestrutura envolvidas na recepção”, explica Cynthia Carneiro, da Faculdade de Direito da USP. Para uma boa parcela dos que vêm, o Brasil é visto justamente como passagem para países mais cobiçados — como ocorre agora com os afegãos. Parte deles alimenta o sonho americano. “Cogito, sim, ir para os Estados Unidos, pensando nas chances que podem se abrir para mim por lá”, admite Sohaila Rasooli, 19 anos, que cursava administração em Cabul quando lhe vetaram o direito de estudar. Suas prioridades imediatas, no entanto, são outras. “Quero voltar a tocar violão, o que não me deixavam mais fazer em meu país”, afirma. Como os outros, ela não vê a hora de levantar voo bem longe do chão frio de Guarulhos.
Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2023, edição nº 2856