“O Estado tem de retomar o controle das comunidades”
Criminologista diz que facções governam parte importante das cidades e o governo precisa trabalhar com redução de danos, pois não há como desmontá-las
Considerado o pai da química moderna, o francês Antoine Laurent Lavoisier não poderia ter sido mais certeiro quando afirmou que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. O brasileiro entende muito bem o que isso significa, principalmente os que pertencem às camadas da sociedade mais fragilizadas. Abandonados pelo Estado e sem possibilidade de prosperar no mundo onde só o dinheiro proporciona o seguro saúde, a educação de qualidade e a casa própria, os menos favorecidos sempre tiveram de encontrar soluções para continuarem existindo, apesar da frustração gerada pela falta de acesso ao consumo, que determina quem é quem na sociedade. Nas últimas duas décadas, uma grande transformação no cenário do crime trouxe uma economia marginal mais organizada, próspera e conectada. “Ela fomenta o mercado formal. Está na política, no garimpo e em empresas offshore. E, ainda, tem grande capacidade de empregabilidade, tanto pela força empreendedora como por oferecer uma saída econômica para muitos, que sonham com o acesso ao conforto e consumo”, diz o criminologista e escritor Bruno Paes Manso, que nas duas últimas décadas acompanhou a formação do crime organizado, quando ainda trabalhava como jornalista na revista Veja e no jornal O Estado de S. Paulo.
A análise da mudança do cenário do crime e o impacto da força econômica das grandes facções estão no terceiro livro do autor, a Fé e o Fuzil, publicado recentemente pela editora Todavia. Muito longe de ser um tratado sociológico árido, a obra é baseada em entrevistas realizadas com ex-matadores, convertidos na igreja evangélica. A partir dessa reunião de depoimentos inéditos, Manso faz uma análise enriquecida pela experiência que o colocou no time de pesquisadores do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP). “O brasileiro descobriu soluções de prosperidade na miséria”, diz ele, que destaca o fato de o crime organizado ter nascido dentro das prisões. Hoje, 90% dos cárceres do estado de São Paulo são dominados pelo PCC, a mais forte das facções do país. “Os integrantes que estão dentro das prisões -ou do lado de fora -devem obediências às regras do jogo.” Eles sabe que morrerão jovens, “mas acham que compensa mais viver menos do que levar uma vida de constantes humilhações”. Abaixo a entrevista com o autor.
O que levou o senhor a escrever a Fé e o Fuzil?
Na década de 1990, quando era repórter de política da Veja, fiz algumas matérias sobre chacinas, que eram comuns na época. Isso me despertou a vontade de saber mais sobre o funcionamento do mundo do crime. Como conseguir uma confissão é um processo delicado, que necessita de vínculo de confiança, decidi investir em ex-matadores, convertidos pela fé dentro das igrejas evangélicas. Eles falavam do passado. Os testemunhos são incentivados pois dimensionam a transformação e o milagre da conversão pelas mãos do Cristo. Nas entrevistas, eu aproveitava para tirar dúvidas sobre o tráfico, a distribuição das drogas e a compra de armas. Para mim, o ex-matador convertido na vida cristã era muito fascinante. Mas eu não sabia o que fazer com o material. Tratavam-se de histórias que certamente dariam um livro, mas baseado na visão da fé dos personagens, o que não é um tema jornalístico propriamente dito. Por isso, o projeto ficou engavetado até que veio o bolsonarismo.
Mas o que tem a ver o bolsonarismo com isso?
O bolsonarismo se mistura com a doutrina evangélica, a guerra do bem contra o mal e a discussão de valores morais. Ele usa o discurso religioso na esfera pública e na política. O crime organizado faz o mesmo, usa o discurso religioso com objetivo público, o de alcançar o poder legítimo nas comunidades.
Quando você começou a perceber isso?
Durante a pandemia, eu observei o crescimento do Complexo de Israel (quadrilha de traficante que expandiu os domínios para outras favelas usando a bandeira de Israel e até o símbolo de David) no Rio de Janeiro. No Morro do Dendê, a figura do traficante convertido em pastor chamava atenção. porque com a ajuda da religião, ele conquistou mais autoridade do que os concorrentes, com um discurso que justificava tanto a obediência da comunidade como os ataques do tráfico. Tudo isso me levou a achar que era hora de escrever e retomar o livro. Então desengavetei as histórias de conversão para explicar um pouco o contexto que vivemos.
O que você queria mostrar para as pessoas?
Depois desses vinte anos escrevendo sobre o tema, com a chegada do bolsonarismo – época que ninguém entendia muito bem o que estava acontecendo – percebi a força da teologia da prosperidade da igreja evangélica, principalmente nesse momento em que as pessoas se acham abandonadas pelo Estado. Quando comecei a escrever sobre política, acompanhei toda a discussão sobre a Nova República. Aqui em São Paulo, por exemplo, as comunidades eclesiais de base e os partidos de esquerda foram elementos fortes desse processo. Os padres diziam que a esquerda precisava estar do lado da população carente e que as comunidades tinham de desenvolver consciência para pressionar o Estado por direitos. Isso deu origem aos movimentos sociais e a uma base importante para o PT. Veio a Constituição de 1988. Tanto o PSDB como o PT pensavam no futuro da política no Brasil, baseado em decisões racionais e econômicas, que transformariam o país em uma grande Suécia. Ou seja, um país justo socialmente, com liberdade, com um Estado que concedesse direitos. Mas isso não aconteceu. Houve uma grande frustração. Sem apoio do governo, as pessoas precisaram empreender e descobriram soluções que surgiram da miséria, de baixo para cima, em duas vertentes. O primeiro grande apoio foi das Igrejas Pentecostais, que passaram a pregar o empreendedorismo e a partir do discurso religioso conseguia produzir autoestima nas pessoas, que se convertiam. Essa autoestima produzia disposição para empreender e ao mesmo tempo um networking de apoio para o crescimento econômico das famílias carentes.
Essa é a teologia da prosperidade?
Exatamente. Essa é uma fórmula para cada um se incluir no mercado de trabalho, em um mundo que exige dinheiro para sobreviver. Sem prosperidade econômica não há direito à educação, plano de saúde e casa própria. A igreja passou a produzir o networking, a disposição necessária para os fiéis terem autocontrole e disposição de produzir. As gangues e facções, que passaram a organizar a cena do crime, passaram a seguir a mesma lógica. Os bandidos ficaram mais profissionais e começaram a bater de frente com o sistema, o que fez o tráfico escalar à esfera da venda por atacado. Colômbia e Bolívia passaram a vender droga para o Brasil, a partir de São Paulo, que distribui para os estados e para o mundo. Esse espírito empreendedor, que transformou o Brasil em um importante corredor de venda de drogas, é uma solução criada e dentro das prisões. A gente pensou que iria civilizar os pobres, mas os pobres criaram soluções a partir da miséria. É a descrição desse processo, como ele foi sendo construído. O livro vai contando essas duas frentes de autogestão que produziram.
Como acontece essa conversão religiosa dos ex-matadores do livro?
Os personagens do meu livro, que vivem esses processos de conversão, chegam ao fundo do poço. Eles têm uma carreira criminal, mas surge uma série de conflitos. Perdem amigos e familiares, porque passam a ter uma vida louca, por outro lado ganham muito dinheiro, até que ficam acuados pelo risco de serem presos. Percebem que é uma vida vazia, que o dinheiro não leva a nada. O deslumbramento inicial dá lugar ao arrependimento e a depressão. A igreja oferece essa transformação. Só que é necessário se arrepender e abraçar a nova a vida ao lado de Cristo. Exige perdoar as desavenças e ser perdoado pelos erros. Tem todo um processo muito interessante de transformação. Nasce um novo propósito de vida. O crime se apropriou desse processo de conversão, adaptando-o ao interesse das organizações. O PCC, por exemplo, criou o seguinte discurso um depois do massacre do Carandiru: “a gente está se matando, mas é o Estado que quer nos matar. Nosso inimigo é o sistema e não nós mesmos”. O bandido passa a lutar contra o sistema, uma coisa meio gihadista (prática a partir da crença islâmica). O inimigo é o Estado, que os encarcera sem direitos, e a polícia, que mata. Os integrantes do crime passam a ter uma consciência coletiva, que fortalece o crime, pois deixam de agir por conta própria. Não é atoa que o PCC tem um ritual que começa no batismo. O novo integrante se converte, passa a se sujeitar às regras do crime, tem uma nova consciência do crime, que também vai transformando a cena criminal a partir dessa nova ética.
A religião evangélica e as facções conseguiram evoluir igualmente?
Pelos números, temos quase 30% de conversões, vamos dizer. Há 50 anos, o Brasil era 90% católico. Hoje são 60% católicos e 30% evangélicos. Os pastores pentecostais tiveram uma grande capacidade de convencimento. No caso do crime, a dimensão é menor, mas com avanços impensáveis. Ele tem influência, por exemplo, na política e na economia, porque ele lava o dinheiro em vários postos de gasolina, padarias, transporte público, time de futebol e igrejas, inclusive. Não estamos mais falando do traficante da favela.
Dá para medir o tamanho da influência das facções nas comunidades?
Uma pesquisa do Latinobarometro, de 2022, aponta que 70% das pessoas dizem que as facções têm alguma influência nos bairros onde moram, o que é um índice muito acima dos países da América Latina. Hoje, o PCC é agência reguladora do mercado de drogas e uma espécie de banco de desenvolvimento. Eles emprestam dinheiro e armas. O crime começa gira mais dinheiro.
Eles subsidiam outras quadrilhas? É isso?
Sim. Por exemplo, esses casos de novo cangaço são financiados com dinheiro do tráfico. O planejamento de um crime leva em média um mês e precisa de armas potentes. Existe uma conexão networking criminal, que viabiliza essas operações. Da mesma forma que os aeroportos do garimpo são os mesmos usados para a droga, o agente que lava dinheiro no offshore para o traficante também ajuda o grileiro e o pecuarista. Essas operações estão cada vez mais interligadas, resultando em uma rede mais profissional e regras fortes. O negócio criminal passa por um processo de profissionalização com esse novo formato, com essa nova governança.
Quando o assunto é tráfico de drogas, o Brasil está em um patamar muito diferente da América Latina em geral?
O Brasil é diferente. O México tem uma história secular na produção de drogas e de bebidas para os Estados Unidos, desde a época da Lei Seca, que deu origem a oligarquias com vínculos históricos-sociais muito antigos. Grandes cartéis e grandes empresas exportam para os Estados Unidos, que são o maior mercado consumidor do mundo. O México distribui o produto dos carteis colombianos, mas é o centro produtor da cocaína nos Andes. Já o Brasil começou a se destacar pela capacidade de organização empresarial do setor. O crime organizado criou um grande corredor de drogas a partir do sul do continente, no momento em que as facções percebem que o atacado é que dá dinheiro. A partir daí, passaram a fechar negócios com os exportadores da Colômbia, do Paraguai e Bolívia, além de exportar a mercadoria para vários continentes. Ao longo do tempo, estreitaram laços comerciais e ampliaram o mercado. Hoje, o PCC, que é a facção mais forte, tem acesso a todos os continentes.
Há quem diga que o Brasil passou de corredor para grande mercado de consumo. É verdade isso?
O Brasil é o segundo mercado consumidor, perde apenas para os Estados Unidos. Destaca-se pelo consumo de cocaína e craque, mas não de outras drogas como ópio e o fentanil (a partir do opioide). Mas continua um corredor estratégico e potente.
Essa situação tem saída? Se sim, qual o caminho?
O Estado tem de retomar o controle das comunidades. As facções estabelecem regras de uma parte importante das cidades, mas que deveriam – e precisam – ser regidas pelo Estado, que é o legítimo agente mediador e produtor de civilidade. Ao assumir esse papel, o crime está ganhando dinheiro, influenciando a política e se tornando uma máfia infiltrada dentro dos estados. Na verdade, querem ganhar dinheiro e não estão preocupados com os interesse coletivos e nem individuais. O Estado precisa retomar essa capacidade de adiar conflitos. Precisa ser visto com legitimidade. Por outro lado, o crime organizado reduziu os homicídios, o que é importante. O estado tem de trabalhar com redução de danos, porque não vai conseguir acabar como o mercado de drogas, que é muito forte. Então, que os traficantes não sejam violentos, não matem, não tiranizem as populações dos bairros. Isso já atinge as facções economicamente. Mas manter essa baixa quantidade de homicídios é fundamental. Trata-se de um ganho que não se pode retroagir. Antes do PCC se estabelecer nas periferias paulistanas, o Capão Redondo era considerado o bairro mais perigoso da capital, com o maior índice de homicídios. Hoje é produtor cultural. A cena mudou. São Paulo tem hoje o menor índice de assassinatos do país.