O inimigo número 1 do PCC
Responsável pelas maiores investigações sobre a facção criminosa, promotor teve a morte decretada caso Marcola fosse transferido para presídio federal
Quatro carros de polícia param atravessados na avenida principal do centro de Presidente Prudente, no interior de São Paulo. O tráfego é bloqueado e dezesseis policiais armados com fuzil e espingarda calibre 12 descem dos veículos. Eles abrem caminho para a chegada de um automóvel preto blindado. Do outro lado da rua, policiais à paisana acompanham a movimentação. O promotor Lincoln Gakiya chega para mais um dia de trabalho. Com 52 anos, 27 de Ministério Público e 22 de combate ao Primeiro Comando da Capital (PCC), a maior facção criminosa do país, Gakiya é considerado hoje o inimigo número 1 do PCC, que completou 25 anos em 2018. Ele foi o responsável pelo pedido de transferência do chefe da facção, Marcos Herbas Camacho, o Marcola, e de outras 21 lideranças para o sistema penitenciário federal. Esteve à frente das últimas duas maiores operações contra o crime organizado, a Ethos e a Echelon, que resultaram em 51 condenações — entre elas, a do próprio Marcola.
Gakiya também conduziu aquela que, com justificada imodéstia, considera “a maior investigação da história do MP” sobre o PCC. São 876 páginas de inquérito que mostram, por meio de escutas telefônicas e delações, como o PCC nasceu de um time de futebol da cadeia, virou um sindicato de criminosos e se transformou em uma multinacional do tráfico que fatura mais de 300 milhões de reais por ano. A investigação trouxe à tona o único grampo em que Marcola caiu desde que assumiu a liderança. No áudio, ele diz que o governador deveria lhe agradecer a existência dos “tribunais” do PCC pela redução dos homicídios no estado. “Irmão, sabe o que é pior? Há dez anos todo mundo matava todo mundo por nada… Hoje para matar alguém é a maior burocracia (por causa do estatuto do PCC).” A papelada fica exposta orgulhosamente sobre a mesa do promotor, e a parede de sua sala é decorada com o organograma da facção (dos chefes presos da “sintonia final” aos criminosos soltos da “sintonia das ruas”). No processo, 175 pessoas foram denunciadas, mas nenhuma foi condenada. “O inquérito serviu mais para conhecimento”, pondera Gakiya, que já se acostumou a sofrer reveses na Justiça e no governo paulista.
Anunciada com pompa pelo governador João Doria, a transferência de Marcola para uma prisão federal em Porto Velho fora pedida por Gakiya já em outubro de 2018, quando se descobriu um ambicioso plano para tirar o chefão da penitenciária de Presidente Venceslau. O promotor queria que o pedido à Justiça fosse feito pelo governo de Márcio França, mas, temeroso de retaliações, o então governador lavou as mãos. Gakiya ficou sozinho na empreitada. “Precisava ser uma decisão de Estado. Personificou-se uma coisa que não podia ser personificada”, diz. Em dezembro, quando o pedido de transferência vazou para a imprensa, a polícia apreendeu mensagens que estavam com mulheres que haviam visitado um vizinho de Marcola na prisão. Decifrados os textos em código, os policiais concluíram que se tratava de uma ordem para executar o “frango japonês” — Gakiya. “Se o amigo aqui for para a federal, essa situação tem que ser colocada no chão de qualquer forma”, dizia outra mensagem. O “amigo” seria Marcola, e a “situação colocada no chão” era o assassinato do promotor.
Gakiya está acostumado às ameaças. Já viu motoqueiros anotando sua placa e drones sobrevoando sua casa. Mas era a primeira vez que ele havia sido “decretado” por Marcola. “O grau de risco, obviamente, aumentou”, diz ele, cuja rotina agora se resume a casa–trabalho, trabalho-casa. As pescarias de dourado, seu maior hobby, atualmente só são vistas em postagens antigas do Facebook. “Hoje, o Brasil inteiro sabe que, se acontecer alguma coisa comigo, será obra do PCC. O que posso fazer é me expor. Não quero ser herói nem mártir”, afirma.
Promover ataques “específicos, silenciosos e covardes” — nas palavras de Gakiya — é a nova estratégia da facção criminosa para intimidar o Estado. Em maio de 2009, o agente penitenciário Denilson Gerônimo, de 27 anos, que trabalhava na penitenciária de Presidente Bernardes, em São Paulo, morreu baleado com catorze tiros na garagem de sua casa. Um detento contou a Gakiya que a facção não tinha nada contra aquele agente em particular: ele fora escolhido por “estar mais à mão”. O objetivo era espalhar terror na categoria. Em 2017 e 2018, pelo menos quatro agentes penitenciários federais foram executados a mando do crime organizado — em um dos casos, os criminosos alugaram a casa vizinha à da vítima, morta com mais de vinte tiros.
O PCC ganhou atenção pública especialmente a partir de 2006, quando, em retaliação a outra transferência de presos graduados da facção, promoveu o pânico em São Paulo e ameaçou policiais. A ofensiva forçou as autoridades a negociar com os criminosos, mas o resultado foi negativo para a facção. Como reação à execução de agentes de segurança, a polícia matou a sangue-frio dezenas de integrantes do PCC. O clima de guerra impactou a venda de drogas. E a execução de bombeiros e guardas municipais, que não tinham nada a ver com a guerra às drogas, levou a sociedade a se revoltar contra a facção (sim, o PCC se importa com sua imagem pública). Foi nessa transferência dos líderes do crime para o presídio de segurança máxima de Presidente Venceslau, sua área de jurisdição, que Gakiya assumiu o comando no combate ao maior grupo criminoso do país. Agora, pela primeira vez em onze anos, Marcola e outros 21 líderes não ficarão submetidos aos seus cuidados. São responsabilidade federal. Mas isso não significa que ele terá menos trabalho.
Na semana passada, a Polícia Civil de Presidente Prudente deflagrou a Operação Protocolo Fantasma, que cumpriu onze mandados de prisão em São Paulo, Paraná, Pernambuco, Tocantins e Mato Grosso do Sul. O alvo principal da operação era Valter Luz Caires, o Keno, apontado como o longa manus da cúpula encarcerada. Segundo um relatório da Polícia Civil obtido por VEJA, Caires tinha a função de operacionalizar as ordens vindas da cadeia, o que consistia, na prática, em acionar bandidos, liberar dinheiro e fornecer armas para ações criminosas em diferentes estados. Em conversas interceptadas pela Polícia Civil, ele é tratado como uma das maiores lideranças do PCC em liberdade, o “bigode grosso” da facção.
Outra operação que deve cair na mão de Gakiya é a Transponder, derivada da Echelon e deflagrada em janeiro. Seu escopo mostra o alcance nacional do PCC: com base em recados interceptados em três cadeias paulistas, a Polícia Civil conseguiu rastrear carros enviados ao Paraguai como pagamento por droga, ordens para queimar cinquenta ônibus em Minas Gerais e “decretos” para matar diretores de presídios no Rio Grande do Norte.
A transferência dos chefões foi um golpe duro para o PCC, mas não significa seu fim: houve tempo para reorganizações. Uma mensagem captada em 11 novembro de 2018 mostra que o PCC já sabia da transferência dos 22, ao contrário do que foi propalado pelo governador João Doria, que se gabou do sigilo da operação. Um agente penitenciário da região de Presidente Prudente contou a VEJA que, nas semanas que antecederam as remoções, houve intensa comunicação entre os presos à noite. De uma cela para outra, os detentos gritavam nomes e tratavam sobre valores de transações. “Parece que não tiveram muito tempo para codificar o que diziam”, conta o guarda.
Antes de Marcola, outros três líderes importantes do PCC já haviam sido transferidos para presídios federais, e não houve ataques como represália. Afastado do comando da facção, em Porto Velho, Marcola, espera-se, não conseguirá dar suas ordens. Desde 2006, ele chegou a ser isolado nove vezes em Presidente Bernardes, mas quando retornava a Venceslau retomava o comando, segundo as investigações. A expectativa é que o isolamento dos chefes acirre guerras internas da facção, que tem disputas cruentas com o Comando Vermelho e a Família do Norte. Gakiya, porém, ainda vê muito trabalho pela frente. Há 800 membros do PCC em Presidente Venceslau, em tese todos aptos a subir na hierarquia do crime. “Quando o Marcola estava aqui, eles nunca ousaram desafiá-lo. Vamos ver agora se eles terão essa ousadia”, diz. A pescaria do dourado ficará para outros tempos.
Publicado em VEJA de 6 de março de 2019, edição nº 2624
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