O polêmico prefeito da cidade de onde sai 81% do ouro ilegal do Brasil
Dono de garimpo, Valmir Climaco ajudou a transformar Itaituba, no Pará, na problemática capital nacional da mineração ilegal
Prefeito da cidade paraense de Itaituba, na região do Tapajós, o cearense Valmir Climaco de Aguiar (MDB) parece ser apenas uma daquelas típicas figuras folclóricas dos rincões do Brasil. O político, de 61 anos, ganhou quinze minutos de fama nacional em março ao surgir em uma festa, aparentemente embriagado, dizendo ao microfone que teria relações sexuais com mais de vinte “raparigas”. A gravação com a cena da grosseria viralizou na internet e lhe rendeu uma multa de 40 000 reais, aplicada pela Justiça estadual a partir de uma ação movida pelo Ministério Público, e a obrigação de se retratar nas redes sociais, o que fez na última quarta, 20. Antes de ganhar os holofotes no país pelo discurso sexista, Climaco já era figura conhecida entre procuradores do Ministério Público Federal e agentes do Ibama por crimes ainda mais graves, boa parte deles relacionada ao meio ambiente. Empresário, madeireiro, fazendeiro e dono de garimpo, assumiu o comando de Itaituba em 2017 e, graças a brechas oferecidas pela legislação estadual, foi peça essencial na transformação do município no epicentro de uma nova corrida pelo ouro, à custa de rasgos gigantescos no coração da Floresta Amazônica. A explosão da atividade veio acompanhada de suspeitas cabeludas de irregularidades, que se encontram sob investigação.
Sob a gestão de Climaco, prefeito em segundo mandato, o garimpo ganhou tamanho impulso que ocupa hoje por lá uma área pouco maior do que a de uma capital como Curitiba. “Concedi mais de 400 licenças para garimpeiros em meu governo”, disse ele a VEJA. A cidade tornou-se também a origem de 81% de todo o ouro classificado como ilegal no Brasil em 2019 e 2020 (6,3 toneladas de um total de 7,7). Os dados são de um estudo realizado pelos pesquisadores Raoni Rajão e Bruno Manzolli, da UFMG, em cooperação com o Ministério Público Federal. Segundo o trabalho, em nível nacional, o comércio do metal ilícito movimentou no mesmo período mais de 9 bilhões de reais. Não por caso, a mineração se transformou num dos principais motores da destruição da Amazônia.
Em Itaituba, um município com pouco mais de 100 000 habitantes, o garimpo tem peso de ouro na economia. A arrecadação da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais, que era de apenas 4 milhões de reais em 2016, chegou a 64 milhões de reais no ano passado, mais que toda a receita somada com os outros impostos locais. Há duas homenagens a céu aberto por lá dedicadas à mineração: o Monumento aos Garimpeiros (estátua de um extrativista em ação) e o Marco Rotário (que traz uma bacia com uma pepita), ambos na orla do Tapajós. Existe ainda um painel instalado no plenário da Câmara Municipal, com a ilustração de um indígena ao lado de um garimpeiro, toras de madeira, um boto, uma tartaruga e uma onça, cuja ideia é passar a mensagem de harmonia entre o garimpo e a floresta — que não há. Com estrutura precária, longe de tudo, proliferam na área rural onde ocorre a mineração os serviços direcionados ao garimpo — como alojamentos, bares e armazéns — e atividades ilegais, como “cabarés” dedicados à prostituição. Nessas regiões é comum a pepita de ouro ser usada como moeda, principalmente para a compra de combustíveis, equipamentos e peças para mineração. Mais comum ainda é a ocorrência de crimes variados, boa parte envolvendo crianças e adolescentes.
Calcula-se que 70% dos locais de extração de minério na cidade operam de forma irregular. Ironicamente, Itaituba virou o eldorado da ilegalidade graças a uma brecha legal. Desde 2015, uma norma do estado do Pará dá aos municípios o poder de fazer o licenciamento ambiental necessário para essa atividade. A regra estadual, por sua vez, se aproveita de brechas na legislação federal, que não deixa claras quais devem ser as exigências ambientais para a outorga de uma Permissão de Lavra Garimpeira (PLG). Esse é o nome da autorização dada pela Agência Nacional de Mineração (ANM) a garimpeiros, que, em tese, deveriam usar procedimentos mais rudimentares e extrair um pequeno volume do minério. Na prática, usam maquinário pesado e insumos altamente poluentes, como o mercúrio. Pará e Mato Grosso concentram 94% das PLGs do país. Só em Itaituba, segundo os registros da ANM, existem 850 permissões de exploração ativas e mais de 9 000 em fase de requerimento. Assim, com uma área um pouco maior que a de um país como a Croácia, a cidade abriga atualmente quase a metade do território ocupado pela atividade de garimpo no país. Um assombro.
Um complicador para o caso é que nem todo o ouro declarado como tendo sido extraído dos garimpos de Itaituba saiu realmente de lá. A “Cidade Pepita”, como ficou conhecida, é apontada por autoridades e pesquisadores como o principal polo de “lavagem” de ouro ilegal do país. O metal retirado de outras localidades da Amazônia, incluindo terras indígenas e unidades de conservação, adentra no mercado legal com a declaração (falsa) de que é proveniente de algumas das centenas de áreas de Itaituba que têm o carimbo de PLG. Isso é possível porque os compradores do ouro dos garimpos — as DTVMs (Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários), empresas autorizadas pelo Banco Central a adquirir o metal e transformá-lo em ativo financeiro — não checam sua origem.
Desde 2018, o Ministério Público Federal no Pará vem mapeando essas brechas na cadeia do ouro, após constatar que as operações policiais feitas contra garimpos específicos não conseguiam frear o crescimento da atividade irregular. No início deste mês, o órgão foi comunicado de uma decisão da Justiça Federal em Itaituba que cancelou a licença dada pela prefeitura a um garimpo de mais de 1 000 hectares dentro da Área de Preservação Ambiental (APA) do Tapajós, que também ocupa o território de outros três municípios, Jacareacanga, Trairão e Novo Progresso. A decisão foi comemorada dentro do MPF, que vislumbra nela um marco para o início de uma nova fase ao combate aos foras da lei.
Em outra frente, os procuradores estão processando em Itaituba três DTVMs por terem comprado 71% (4,3 toneladas) de todo o ouro classificado como ilegal na região em 2019 e 2020. O Ministério Público pediu a suspensão por lá das atividades das empresas FD Gold, Carol DTVM e OM (Ourominas) até que implantem mecanismos de compliance, além da condenação ao pagamento de indenizações bilionárias. A FD Gold pertence ao empresário Dirceu Santos Frederico Sobrinho, que também preside a Anoro (Associação Nacional do Ouro). Em ao menos duas ocasiões ele se reuniu em Brasília com o vice-presidente, general Hamilton Mourão, que comanda o Conselho da Amazônia, para tratar de temas de interesse do setor. Procurado pela reportagem de VEJA, Frederico Sobrinho, da FD Gold, não retornou o contato. A Carol DTVM não foi localizada e a Ourominas informou, por meio de uma nota, que segue a legislação e as boas práticas. Para o delegado Alexandre Saraiva, que comandou a Polícia Federal no Amazonas de 2017 a 2021 e deixou o cargo após acusar o ex-ministro Ricardo Salles de proteger madeireiros, seria possível acabar com o garimpo ilegal na Amazônia com apenas dois helicópteros, cinquenta homens e imagens de satélite. “Mas o problema é político. Os políticos locais são ligados a quem lucra na região”, diz.
O prefeito Valmir Climaco é um dos maiores exemplos dessas relações promíscuas entre poder e garimpo. Nascido no Ceará, de onde migrou para Itaituba aos 16 anos ao lado dos pais e doze irmãos, ele foi de funcionário de loja de confecções a proprietário de uma área de mineração. “Eu parei com garimpo vai fazer seis anos agora. Só tenho um ‘garimpinho’, mas não tenho mais vontade de mexer porque estou ficando velho”, desconversa. Sua campanha à reeleição foi em boa medida financiada por um garimpeiro mato-grossense com interesses em Itaituba. Trata-se de Valdinei Mauro de Souza, o Nei Garimpeiro, que bancou 63% da campanha do prefeito em 2020, com uma doação de 200 000 reais.
Ao registrar sua candidatura à reeleição, em 2020, uma certidão apresentada à Justiça Eleitoral enfileirou nada menos que 45 processos, investigações, ações e execuções fiscais contra ele apenas na Justiça Federal de primeira instância em Itaituba. Em setembro de 2019, em uma ação na primeira instância federal em Santarém (PA), o político foi condenado a quatro anos e nove meses de prisão por explorar madeira da União em sua madeireira, decorrente do desmatamento de 746 hectares em terras da União, entre 2002 e 2003. Ainda nas suspeitas de crimes ambientais, o prefeito era acusado de extrair ouro sem licenciamento no Garimpo dos Palmares, em Maués (AM), processo suspenso em fevereiro mediante condições impostas a ele, como a proibição de mudar-se de casa sem avisar à Justiça, comparecer bimestralmente em juízo e pagar 40 000 reais em multa, destinados ao escritório do ICMBio em Manaus.
Politicamente articulado, Climaco muitas vezes assume a linha de frente no combate aos cercos de fiscalização da PF contra o garimpo irregular na região. Em março, foi recebido pelo ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, para reclamar de uma operação recente realizada em Itaituba e outras localidades na vizinhança. Os agentes destruíram equipamentos como retroescavadeiras. A reação comandada por Climaco tem o apoio de boa parte da classe política local. “Se preocupam com o garimpo, mas esquecem que, dos 23 milhões de habitantes do Norte do país, menos de 3% tem água encanada”, afirma o vereador Wescley Tomaz (MDB). No dia 5 de abril, ele foi recebido pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo ministro da Justiça, Anderson Torres, em Brasília, para reclamar da situação. No encontro, segundo o vereador, foi discutida a legalização das áreas que compreendem mais de 70% dos garimpos do Tapajós.
Caso esse tipo de lobby obtenha resultados, a lista de graves problemas ambientais tende a se tornar ainda mais alarmante. A exploração desenfreada da mineração levou a uma imensa degradação na Amazônia, principalmente em razão do desmatamento e do uso do mercúrio. A contaminação pelo metal chegou a alterar a cor de alguns trechos do Tapajós. Segundo análise feita pela Polícia Federal, a mudança nas características do rio — que ficou barrento e marrom — foi provocada pelo “aumento drástico” de mercúrio proveniente das atividades do garimpo ilegal. O laudo integra um inquérito que apura as situações em Itaituba e Santarém e usou imagens de satélites entre julho de 2021 e janeiro de 2022. Estima-se que os garimpeiros tenham dispensado 7 milhões de toneladas de rejeitos no rio — incluindo mercúrio, cianeto e entulhos de desmatamento.
A despeito das provas eloquentes, o prefeito Climaco adota uma postura negacionista frente ao problema. “Desafio qualquer cientista a me provar que na nossa região tem alguma pessoa doente”, afirma. “Mercúrio não mistura com água. Moro na beira do Rio Tapajós há 44 anos, peguei 41 vezes malária, queimei toneladas de ouro quando era garimpeiro e nunca tive nada no sangue”, completa. O discurso é contrariado por pesquisas como uma feita pela Fiocruz em 2021, que encontrou aldeias próximas ao rio onde 87,5% das pessoas tinham níveis de mercúrio acima do recomendado pela OMS. Segundo os cientistas, a contaminação se dá pelo consumo de peixes. Contra também todas as evidências, Climaco afirma que sua gestão tem endurecido a fiscalização dos garimpos. “Temos três caminhonetes alugadas para rondar as áreas, o governo do estado vai dar mais dez caminhonetes e quatro drones. Estamos preparando um sistema para fiscalizar 100%: o cara vai no garimpo, liberou a licença, começou a trabalhar, vamos fiscalizar. Se estiver trabalhando em outra área, o que às vezes acontece, vamos ser os primeiros a apreender o equipamento”, diz.
Considerando-se o histórico do prefeito, é uma promessa difícil de acreditar. Lucra com essa situação de terra sem lei uma minoria de empresários e políticos. Perde a maioria dos brasileiros com a destruição do valioso patrimônio da Amazônia e as chamas de repercussão disso na já bastante chamuscada imagem do país no exterior, o que prejudica inclusive os negócios lá fora das mineradoras que atuam por aqui sob rígido controle ambiental. Mais preocupante ainda que Itaituba é apenas o exemplo maior de um problema que se repete em dezenas de outras cidades da região. Em meio à semana de comemoração de mais um Dia da Terra, celebrado em 22 de abril, está mais do que na hora de o país acordar para os estragos provocados pela atuação de políticos como o prefeito Climaco e a cadeia de interesses que os protege.
Publicado em VEJA de 27 de abril de 2022, edição nº 2786