Desde a posse de Jair Bolsonaro, as condições nunca foram tão favoráveis à agenda liberal e aos projetos de modernização do Estado. Vacilante na primeira metade de seu mandato, o presidente voltou a defender essas bandeiras e conseguiu eleger aliados para as cúpulas das duas Casas do Congresso. Além disso, o deputado Arthur Lira (Progressistas-AL) e o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) — os novos comandantes da Câmara e do Senado — dedicaram o início de suas gestões a reuniões com o ministro Paulo Guedes, com o objetivo de destravar pontos da pauta econômica. Essa sintonia fina já rendeu um fruto: a aprovação da autonomia do Banco Central. O primeiro grande teste dessa nova aliança, no entanto, ocorrerá nos próximos dias, quando o governo e os chefes do Legislativo tentarão convencer os parlamentares a chancelar um acordo que prevê a retomada do pagamento do auxílio emergencial desde que atrelada a medidas de contenção do gasto público. A ideia é mostrar responsabilidade social, por meio da renovação do benefício que garantiu a sobrevivência dos mais pobres durante a pandemia de Covid-19, e também um forte compromisso com o equilíbrio das contas públicas. Ou seja: fazer um agrado à política, e outro à área econômica.
O plano costurado por Guedes com Lira e Pacheco prevê a inclusão de uma cláusula de calamidade pública na proposta de emenda constitucional (PEC) do pacto federativo, considerada pelo ministro o mais importante dos projetos em tramitação. Essa cláusula funcionaria como uma espécie de botão de emergência e permitiria gastos extraordinários, como o próprio auxílio emergencial, em situações excepcionais — por exemplo, crises sanitárias e guerras. No roteiro dos sonhos de Guedes, o benefício só começará a ser pago depois da promulgação da PEC, mas, como Bolsonaro anunciou a intenção de retomá-lo já em março, há a possibilidade de o desembolso sair antes da votação do pacto federativo. Isso poderá ser feito com a liberação de um crédito extraordinário por meio de medida provisória. Essa alternativa não agrada ao ministro porque representaria o aumento imediato do endividamento público, ficando a compensação em cortes de gastos pendente de aprovação. Ou seja: o agrado à política, certo e cristalino, sairia antes do agrado à equipe econômica, incerto e no aguardo de uma futura votação. “O desafio é transformar uma recuperação cíclica, baseada em consumo, porque auxílio emergencial é consumo, numa retomada do crescimento sustentável, com base em investimentos”, disse Guedes a VEJA. “Por isso, temos de ter um novo marco fiscal, se não o investimento não vem. O novo marco fiscal é o seguinte: ataque o problema da saúde sem comprometer as futuras gerações”, acrescentou. A PEC do pacto federativo tramita no Senado desde 2019 e prevê a descentralização dos recursos da União para estados e municípios e a flexibilização de gastos mínimos em educação e saúde. Hoje, os municípios, por exemplo, são obrigados a destinar 15% da receita corrente líquida para a saúde e 25% para a educação. A ideia é manter a destinação total de 40% da receita corrente líquida, mas deixando a cargo do prefeito a decisão de quanto gastar em cada uma das duas áreas. A proposta de flexibilização partiu dos próprios governantes municipais e estaduais, com os quais o governo conta para convencer deputados e senadores a votarem a favor do novo pacto federativo. “É fundamental uma cláusula de calamidade pública na PEC do pacto federativo para que haja auxílio no Brasil”, declarou Rodrigo Pacheco.
A maior preocupação de Guedes é impedir que despesas e ajudas oficiais extraordinárias se tornem permanentes. Evitar isso, segundo o ministro, seria demonstrar compromisso com as gerações futuras. “Durante a pandemia, demos 140 bilhões de reais a estados e municípios, com repasses de recursos, rolagem de dívida, transferência para fundos. O que exigimos em troca? Que esse dinheiro não poderia virar aumento de salário para funcionários públicos nos próximos dois anos”, relembrou Guedes. “Assim, as despesas transitórias com a saúde não se tornaram permanentes e economizamos 140 bilhões de reais. Essa é a mentalidade da proteção das futuras gerações. O novo marco fiscal, portanto, será um monumento à boa política”, acrescentou. Ainda não está definido o novo modelo do auxílio emergencial, que beneficiou 69 milhões de pessoas no ano passado, a um custo de 330 bilhões de reais. Pelo acordo selado entre o governo e a cúpula do Congresso, o valor pago às famílias carentes ficará entre 250 reais e 300 reais, por um prazo de quatro meses. Após esse período, entraria em vigor o novo programa de transferência de renda, um Bolsa-Família turbinado, que se tornaria viável apenas com o avanço das reformas estruturantes. Só com a reforma administrativa, o Ministério da Economia espera economizar cerca de 300 bilhões de reais em dez anos.
Quando o auxílio emergencial foi extinto, em dezembro passado, Bolsonaro disse que não pretendia prorrogá-lo, sob a alegação de que não havia recursos para tanto e de que a pandemia estava no “finalzinho”. A perda de popularidade recente — provocada pelo fim do benefício e o agravamento da crise sanitária — e a pressão dos políticos levaram o presidente a mudar de entendimento. Em um almoço na residência oficial do Senado, no último dia 12, o anfitrião Rodrigo Pacheco e os convivas Guedes e Arthur Lira se debruçaram sobre as alternativas que permitiriam a volta do auxílio. À mesa, eles concordaram que o gasto extraordinário deveria ser compensado com um ambicioso pacote de cortes de despesas, como forma de evitar o aumento da dívida pública. No encontro, foi manifestada ainda a preocupação com um suposto repique inflacionário que poderia ocorrer com a volta do pagamento do benefício. Para evitá-lo, decidiu-se que o novo auxílio terá valor menor e beneficiará menos gente. A tendência é que o número de assistidos caia para algo entre 30 milhões e 40 milhões de pessoas.
No almoço, Guedes mostrou que ainda não entende bem os sinalizadores da política. Entusiasmado com as perspectivas de entendimento com o Congresso, ele declarou que 2022 seria o ano da retomada vigorosa da economia do país. Foi imediatamente advertido pelos parlamentares. Eles deixaram claro que o esforço tem de ser feito para destravar a economia o mais rápido possível, para plantar em 2021 e colher em 2022, sob pena de as urnas mandarem para casa os governistas. “Deixa eu te falar do calendário político, Guedes: para a classe política, ou este ano bomba, ou ano que vem está todo mundo morto. O que tiver de acontecer tem de ser este ano. Se for plantar no ano que vem, morreu de fome. Entendeu?”, ponderou Lira. Guedes ainda foi orientado a incluir gordura em suas propostas em tramitação no Congresso, a fim de ter margem para negociação. Recebeu o conselho de dividir seus textos em partes azuis, aquelas que devem ser defendidas a ferro e fogo, e partes vermelhas, das quais o governo desistirá para fingir que fez concessões durante as tratativas com os parlamentares. A sugestão parece uma obviedade, mas se tornou necessária diante de um precedente.
Na reforma da Previdência, em 2019, o governo planejava economizar 1,2 trilhão de reais em dez anos. Durante a tramitação, várias concessões foram feitas, chegando ao ponto de o ministro ameaçar pedir demissão se o Congresso votasse um projeto que resultasse em economia menor que 800 bilhões de reais. O texto aprovado, por pouco, não ficou abaixo disso. Nessa nova fase, o governo precisará negociar muito para destravar sua agenda, que é tão necessária quanto ambiciosa. Dela também fazem parte a reforma tributária, a privatização da Eletrobras e uma série de projetos destinados a incentivar o investimento privado no país. “Os próximos dias serão decisivos. Se não aprovarmos o novo marco fiscal, os juros vão para a lua. Se os juros subirem, os investimentos não virão e não teremos criação de empregos e renda. Vamos continuar com desemprego em massa e estagnação econômica. Vai virar uma bola de neve. Mas, se estabelecermos um novo marco fiscal, o Brasil será outro, com mais investimentos”, disse Guedes. Será, de fato, o grande teste de fogo para a gestão Bolsonaro.
Publicado em VEJA de 24 de fevereiro de 2021, edição nº 2726