Onda migratória de venezuelanos volta a crescer, mas com novo perfil
Desta vez, o fluxo é embalado por uma turma cheia de planos que já começa a mudar os hábitos locais
As grandes ondas migratórias são provocadas por aflições humanas extremas, daquelas em que a jornada pela sobrevivência se faz tão dolorosa que o melhor é empacotar o que der e pôr o pé na estrada. Vem sendo assim com os venezuelanos, que há anos cruzam fronteiras sul-americanas para escapar da pobreza e da falta de democracia e horizontes em seu país, sob o comando de Nicolás Maduro. Em tempos modernos, nenhum êxodo, nem mesmo o dos castigados sírios, se equipara à debandada da Venezuela, que já registra 6,8 milhões de pessoas. Após extenuantes travessias, uma parte delas deságua no Norte do Brasil, em Pacaraima, no estado de Roraima. Lá, chamaram especial atenção em 2017, quando vieram aos milhares e desencadearam uma crise fronteiriça. Nunca deixaram de chegar, mas estavam rareando — até que, em 2023, o número voltou a subir.
Um novo relatório da Agência da ONU para Refugiados (Acnur) mostrou preocupação com o aumento das migrações. Segundo dados da Operação Acolhida, da Casa Civil do governo federal, o Brasil recebeu quase 25% mais venezuelanos no último ano, passando de quinto a terceiro maior destino dessa multidão em busca de uma existência melhor, atrás apenas de Colômbia e Peru. Tamanho é o afluxo dos vizinhos que a demografia local começa a ser chacoalhada. Segundo o Censo do IBGE, nenhum estado cresceu tanto em população em uma década quanto Roraima — 41%, em torno de sete vezes a média nacional.
O movimento parecia ter arrefecido, mas se renovou com uma onda diferente da que desbravou o caminho lá atrás, quando se pisava em território brasileiro muitas vezes à noite e fugindo dos guardas a postos para barrar a passagem. Uma parcela ainda atravessa a divisa em situação de vulnerabilidade e é acolhida em abrigos, uma engrenagem que conta com o apoio da ONU e do próprio governo brasileiro, que lhes providencia a documentação necessária. Mas um grupo crescente vem se deslocando agora com um plano bem traçado e lugar para ficar. “A recente leva é composta por uma parte expressiva de gente que tem famílias ou amigos estabelecidos e esperando por eles, conseguindo se integrar ao mercado de trabalho e colocar a vida para frente”, explica Carolina Macedo, da equipe da Acnur.
Na capital Boa Vista, onde um de cada dez habitantes já é venezuelano, eles deixam sua marca nos mais diversos escaninhos do cotidiano — o reggaeton, por exemplo, pegou a um ponto tal que o hit Fuera del Mercado, de um famoso cantor de Caracas conhecido como Danny Ocean, ecoa em todo o canto, entoado inclusive por brasileiros. Também a culinária ganhou um tempero diverso. Natural da cidade de Bolívar, Miguel Ramos, 39 anos, inaugurou ali um restaurante cujo carro-chefe são as arepas, espécie de panqueca à base de milho com recheios variados. “No início, foi difícil vender uma comida que não é daqui. Mas hoje quase todos os meus clientes são brasileiros, que adoram a versão com carne desfiada e queijo”, conta ele que, com o dinheiro que juntou, abriu mais duas unidades e bancou a viagem da família inteira a Boa Vista.
Os novatos ajudam a girar a roda da economia da capital, cujo PIB se finca principalmente no comércio. “Atualmente, muitos migrantes investem nos setores de gastronomia, turismo e estética”, relata João Carlos Jarochinski, professor de relações internacionais da Universidade Federal de Roraima. A Venezuela, também lembrada pelos concursos de miss, cultiva uma indústria da beleza que, embora em desaceleração, ainda tem seu vigor. E ela vem desembarcando no Norte brasileiro pelas mãos de jovens empreendedores como Emely Ruiz, 29 anos, que montou um salão em Boa Vista, onde fixou endereço com o marido e a filha. Neste e em outros salões, as roraimenses já pedem para fazer as unhas à moda venezuelana, com pedrinhas e ornamentos sobre o esmalte. “No começo, sentia que os brasileiros eram resistentes à nossa chegada, mas, com o passar do tempo, construímos vínculos”, reconhece Emely. Como sempre ocorre com imigrações maciças, o preconceito aflora, e tristes episódios movidos a xenofobia acontecem. Felizmente, segundo a Acnur, eles têm caído ali ano a ano, num sinal positivo de que os forasteiros estão aos poucos se integrando à sociedade.
Algumas bem-vindas iniciativas têm contribuído para que os venezuelanos se sintam mais em casa. Uma delas tem a ver com a língua — o espanhol já é usado em placas e às vezes no material didático das crianças. Na escola municipal Maria das Dores Brasil, referência no estado, há alta concentração de imigrantes, que são recebidos com uma bem planejada estratégia. “Educamos de forma lúdica, promovendo clubes do livro e competições esportivas, para que eles aprendam de forma mais natural”, diz a professora de português Lidiane Leite. Por lá, professores e alunos brasileiros começam a falar um bom espanhol. A Universidade Federal de Roraima também registra uma ascendente presença de venezuelanos. “A procura de cursos de extensão de português explodiu com a chegada deles, assim como ocorreu com os de espanhol, que atraem cada vez mais brasileiros”, observa o reitor José Geraldo Ticianeli. E desse jeito, um dia após o outro, o cenário vai se tornando mais multicultural e repleto de histórias de migrantes que reescrevem sua história em terra estrangeira.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2023, edição nº 2860