A anulação das provas obtidas no acordo de leniência feito pela Odebrecht, após decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli, significou um baque para o último pilar da Lava-Jato que seguia firme até então. O movimento, no entanto, não foi o único a enfraquecer passos da operação, depois dos erros e exageros já reconhecidos pela Justiça em sua condução. Em maio deste ano, a J&F, holding detentora da JBS, conseguiu reduzir sua multa, que era de R$ 10,3 bilhões em um dos maiores acordos de leniência da história, para R$ 3,5 bilhões, um desconto de quase R$ 7 bilhões. A mudança aconteceu com decisão da 5ª Câmara do MPF, em processo repleto de denúncias de irregularidades e que deflagrou uma crise interna no órgão, pela maneira como a decisão foi conduzida.
A história começa entre o fim de 2021 e o início do ano passado, quando a J&F recorria à Justiça ao afirmar que houve um erro contábil no cálculo do valor de sua multa, feito no momento em que a leniência foi firmada. A 5ª Câmara entendeu, em um primeiro momento e sob a coordenação do subprocurador Alexandre Camanho, que não tinha competência para alterar os termos do acordo. Como um órgão de caráter revisor, segundo especialistas, é papel dessa câmara a validação ou o apontamento de inconsistências nos acordos, caso seja acionada — e não atuar na alteração do acordo em si, o que deve ser feito pelo procurador natural do caso.
A posição foi confirmada, à época, pelo Conselho Institucional do MPF, uma espécie de segunda instância das câmaras. A decisão, então, caiu nas mãos do procurador em primeiro grau, que era Carlos Henrique Martins Lima. Ao julgar, ele entendeu que não fazia sentido alterar o valor da multa, já que a saúde financeira da empresa era estável. E sem que os advogados da J&F recorressem naquele momento, o caso acabou transitando em julgado.
Meses depois, no entanto, a J&F voltou a acionar a 5ª Câmara, mais uma vez em busca de corrigir o valor fixado seis anos antes, em 2017. O colegiado, a essa altura, já tinha outra formação, e era coordenado por outra pessoa: o subprocurador-geral Ronaldo Albo, promovido em 2021 pelo chefe do MPF, Augusto Aras. Alexandre Camanho, que havia conduzido a matéria da primeira vez, ainda integrava a turma, mas estava de férias.
A volta do pedido da empresa à 5ª Câmara, no entanto, não foi anunciada pelo novo coordenador. Segundo um membro do MPF, o processo foi pautado no apagar das luzes, sem aviso prévio — à exceção de um telefonema recebido pelo subprocurador Eitel Santiago, na véspera da sessão, vindo de um dos assessores de Ronaldo Albo. O recado era de que um caso novo seria pautado no dia seguinte, mas que o voto estava bem estruturado, e não havia obstáculos para acompanhar o relator.
No dia seguinte, após ouvir Albo votar pela mudança no valor da multa, Santiago entendeu que era preciso uma análise mais atenta. Pediu vista, e quando a matéria voltou a ser votada, a turma já estava completa. O terceiro membro, Camanho, havia voltado de férias e, depois de ouvir o voto contrário do colega, se disse apto para participar — ele afirmou estar por dentro do caso, já que o havia conduzido um ano antes.
A atitude deu início a uma discussão aos berros, que durou cerca de meia hora. Albo entendia que Camanho não deveria votar, já que não esteve presente na sessão inicial. Acalmados os ânimos, ficou validado o terceiro voto, com placar final de 2 a 1 contrário à redução na multa. Mas uma nova reviravolta chacoalharia o cenário mais uma vez: na ata da sessão, Albo registrou o placar, mas informou ter acolhido novo recurso da J&F, até então desconhecido pelos colegas, que pedia a nulidade do voto de Camanho. O argumento era o mesmo: como ele não esteve presente na leitura do relatório, não poderia participar da votação. No entendimento de especialistas, no entanto, caberia ao próprio subprocurador afirmar se poderia ou não votar, como havia acontecido. Mas o procedimento foi ignorado, e o voto anulado.
Em seguida, Albo entendeu que, como coordenador da câmara, sua posição deveria prevalecer no empate ali estabelecido, em 1 a 1. Ele, então, deu prosseguimento ao pedido da empresa, descontando o valor da multa. Ao procurador natural, Carlos Henrique Martins Lima, que antes havia decidido que a mudança não deveria acontecer, só restou o comunicado do desconto, com trânsito em julgado e o processo em sigilo. Não havia mais o que fazer.
Desde então, o episódio é motivo de mal-estar no Ministério Público Federal. Colegas de Albo chegaram a se recusar a participar de sessões com ele, em meio a acusações de corrupção. Também foi formalizado um pedido pelo seu afastamento, endereçado ao procurador-geral Augusto Aras, de quem Albo é aliado. O descrédito escalou, a ponto de o subprocurador ser apelidado em grupos no WhatsApp de “Rolando Algo”, em alusão às suspeitas envolvendo seu nome.
Ele também foi alvo de outros pedidos de afastamento, assim como da suspensão de sua decisão. Do procurador Carlos Henrique Martins Lima, partiram recursos para a própria 5ª Câmara, para o Conselho Institucional, à Procuradoria do Distrito Federal e à Procuradoria-Geral da República. No fim de agosto, a Corregedoria-Geral do MPF abriu inquérito contra Albo que, segundo interlocutores no MPF, planeja se aposentar em breve. E recentemente Aras determinou que o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) investigue supostas irregularidades cometidas por procuradores no acordo com a J&F, desde o período anterior à assinatura do compromisso — ou seja, desde antes da decisão de Albo, o que amplia os holofotes em busca de outros erros.
Questionada por VEJA, a PGR não se manifestou. Em nota assinada por Albo e publicada pelo MPF, a 5ª Câmara afirma que a mudança “trata-se de um pedido pontual de solução de controvérsias, indicação prevista no próprio acordo assinado pelo MPF, e não de uma repactuação ou revisão do acordo”, mas deixa de abordar a decisão de anular o voto de um colega do colegiado.
O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Ubiratan Cazetta, lembra que “as câmaras são órgãos colegiados”. “Mesmo uma decisão tomada em regime de urgência tem que ser ratificada pelo colegiado”, reforça. A medida também foi alvo de contestação das entidades afetadas: Petros, Funcef, Caixa e BNDES receberiam parte do valor da multa e agora tentam reverter judicialmente a decisão, já que a quantia atual será toda destinada à União.