Os detalhes da execução do criminoso mais procurado do Brasil
Polícia suspeita que o principal líder do PCC fora da cadeia tenha sido morto a mando da cúpula de sua facção, que deixou pista mórbida sobre o crime
Os corpos, achados por um índio que colhia muricis na mata, estavam perfurados a bala, tinham sinais de tortura e exibiam cordões de ouro com pingentes de cifrão. Nada que impressionasse muito a polícia cearense, acostumada às execuções produzidas pela guerra de facções criminosas que aterroriza o Ceará desde o início do ano. Mas três tatuagens nos braços de um dos mortos chamaram a atenção dos investigadores: coincidiam com os nomes dos filhos e da mulher do bandido mais procurado do Brasil: Rogerio Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, a principal liderança do Primeiro Comando da Capital (PCC) fora da cadeia. Junto com ele, jazia o corpo de Fabiano Alves de Sousa, o Paca, membro da mesma facção.
Acusado de homicídio, tráfico de drogas e formação de quadrilha, Gegê era responsável pela operação de contabilidade, venda interna e exportação para a Europa da cocaína vinda da Bolívia e do Paraguai — hoje, o negócio mais lucrativo do PCC. Estava foragido desde fevereiro de 2017. No linguajar corporativo, era o “diretor executivo” da organização criminosa, subordinado ao chefe do PCC — Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, que, trancafiado há quase dezenove anos, acaba de receber uma nova condenação, de trinta anos de prisão, que pouca diferença fará diante dos mais de 200 anos que já acumula. Mas, da prisão, Marcola continua mandando no pedaço.
O assassinato de Gegê e Paca fez com que o governo federal anunciasse, no domingo 18, o envio de 36 homens ao Ceará, incluindo membros da Força Nacional. O temor era que a notícia provocasse uma reação em massa nos presídios de Fortaleza, onde o PCC é o grupo mais organizado. Quando um membro da facção é morto, é praxe que os integrantes presos se reúnam no pátio das penitenciárias para rezar um Pai Nosso e pronunciar gritos de guerra. Ao contrário da expectativa, porém, o que houve foi um estrondoso silêncio. Assim, não demorou para que a polícia passasse a considerar a hipótese, agora predominante, de que o assassinato dos membros do PCC foi ordenado pela própria cúpula da facção.
Emboscada na selva
As últimas descobertas reforçam essa tese. Gegê, com o auxílio de Paca, coordenava o PCC vivendo na Bolívia, onde eles estavam até há pouco. No fim do ano passado, a dupla transferiu-se para solo brasileiro, para aproveitar as férias com as respectivas famílias em praias cearenses. Passando-se por empresários locais, eles compraram uma casa por 2 milhões de reais num condomínio em Aquiraz — e encheram a garagem com duas Land Rover Evoque e duas BMW modelo X6. Na quarta-feira de cinzas, as férias acabaram e os parentes voltaram para São Paulo. Na quinta, Gegê e Paca subiram em um helicóptero de passeio com destino à Bolívia — a bordo, apenas o piloto e o copiloto. O veículo aéreo voaria em altitude baixa para não ser pego pelos radares e faria pelo menos dez paradas até chegar a Santa Cruz de La Sierra. No fim, acabou só fazendo uma. Poucos minutos depois de levantar voo, o piloto teria simulado uma pane para descer no meio da reserva indígena Lagoa Encantada. Quando desembarcaram, Gegê e Paca teriam sido rendidos, torturados e mortos por seus acompanhantes. Antes, porém, tiveram os olhos perfurados — punição aplicada a membros da facção acusados de ter “olho gordo”, um sinônimo de ambição desmedida. Os corpos foram queimados, mas a chuva que caía na região impediu sua incineração. O fato de não haver marcas de algema nos pulsos reforça a tese de que embarcaram voluntariamente no helicóptero em que estavam seus assassinos.
Segundo o promotor do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) de Presidente Venceslau, Lincoln Gakiya, os bandidos podem ter sido mortos como represália por terem desviado dinheiro do PCC. Um bilhete escrito a mão, apreendido na portaria do lado de fora da Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, diz que eles estavam roubando da organização e que a ordem das mortes partiu do traficante Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho. “Amigos aqui é o resumo do Pe quadrado [Penitenciária] e mais uns irmãos. Ontem foram chamados em uma ideias, aonde nosso ir [irmão] cabelo duro deixou nois [sic] ciente que o fuminho mandou matar os (…) o GG e o Paka. Inclusive o ir cabelo duro e mais alguns irs [irmãos] são prova que os irs [Gegê e Paca] estavam roubando”, diz o texto apócrifo.
Segundo investigações da polícia, Fuminho é bastante próximo de Marcola, com quem viveu no Paraguai, nos 1990, e é dono de uma fazenda na Bolívia produtora de cocaína. “Provavelmente, o Gegê estava atravessando os negócios do Fuminho na Bolívia. O bilhete visa eximir a responsabilidade do Marcola. É provável que o Fuminho tenha ordenado, mas com a autorização do Marcola”, disse um investigador a par do caso.
Pesa sobre Gegê e Paca ainda a suspeita de terem ordenado, em dezembro, o assassinato de um membro do grupo, Edilson Borges Nogueira, o Birosca, sem o consentimento da liderança. Respeitado pela massa carcerária pela morte de policiais e por comandar o tráfico de Diadema (SP), Birosca havia sido afastado do PCC no meio do ano passado por divergências internas. Segundo um delegado de Presidente Venceslau, ele teria afrontado Marcola com revelação do livro Laços de Sangue, do ex-procurador Marcio Christino, de que o chefão havia sido informante da polícia para conseguir ascender na facção. Em outro caso, sua mulher teria brigado feio com a esposa de um sócio de Gegê numa das tantas visitas de ônibus a Presidente Venceslau. Apesar de excluído da quadrilha, Birosca tinha uma relação de “quase parentesco” com os líderes do PCC — fora batizado pelo próprio Marcola e tinha como padrinho de seu filho Daniel Canônico, o Cego, outro chefe. Deste modo, a sua morte só poderia ser decretada pela cúpula. Marcola e companhia, no entanto, estavam incomunicáveis no regime especial de isolamento, quando ele foi morto por golpes de estilete durante um banho de sol.
O PCC no Ceará
Esta não é a primeira vez que se tem notícia da presença de lideranças do PCC no Ceará. Em março de 2016, a Polícia Federal prendeu o irmão de Marcola, Alejandro Juvenal Herbas Camacho Júnior, em Fortaleza. Em 2012, o próprio Marcola havia pedido transferência para um presídio da região. Segundo um delegado da Polícia Civil de São Paulo, o PCC firmou um importante entreposto no estado, onde adquiriu propriedades e redes de comércio para lavar o dinheiro do narcotráfico. O Ceará também desperta interesse por sua posição geográfica – é a costa brasileira mais próxima ao continente europeu, para onde boa parte da droga é enviada por veleiros e navios de carga. “Para o crime organizado, o Ceará é o centro geográfico. Quem conquistá-lo, conquista o Nordeste”, resumiu o ministro da Justiça, Torquato Jardim, na última segunda-feira.
Uma investigadora da Polícia Civil do Ceará, que pediu não ser identificada, afirmou que o PCC chegou à região por volta de 2011 e promoveu a “pacificação” entre as diferentes quadrilhas que disputavam o espaço no estado. “Naquela época, o número de homicídios caiu drasticamente. A facção decidiu em que local cada uma deveria ficar, e, deste modo, organizou o crime.” A paz imperou até fim de 2016, quando rompeu a guerra entre PCC e Comando Vermelho nos presídios — e a partir daí os índices de criminalidade saltaram. “Aí já era tarde demais. Quando o governo admitiu a existência do PCC, ele já estava consolidado”, comentou ela.
Gegê e Paca eram líderes emergentes do PCC. Galgaram posições na facção ao conseguir o domínio sobre todas as etapas do tráfico de drogas envolvendo a produção nos países vizinhos e a venda para o exterior. Por isso, avaliam os investigadores, a perda dos dois seria um golpe duro na organização criminosa — a não ser que tenha ocorrido por vontade dela. A história do PCC sempre foi marcada por execuções sumárias de suas lideranças. O próprio Marcola só conseguiu chegar ao topo após o assassinato dos fundadores. A morte de Gegê e Paca, portanto, pode ter tido um objetivo que vai além da vingança: mostrar aos membros do PCC quem continua no comando.