A segurança pública ganhou relevância política nos últimos tempos e já desponta como um tema central para a eleição nacional de 2026. O avanço das facções criminosas, o entrelaçamento cada vez mais evidente da bandidagem com o poder público, a persistência das altas taxas de crimes em níveis vergonhosos, as cenas frequentes de violência a que a população é submetida nos grandes centros urbanos e a inoperância das autoridades para lidar com a escalada do problema assustam a população. Em meio a esse cenário, no entanto, há ilhas de excelência que vêm experimentando resultados positivos nesse enfrentamento, com reduções expressivas em ocorrências sensíveis como homicídios, latrocínios e roubos, conforme mostra um levantamento feito por VEJA com base em dados do Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp), que são fornecidos pelos estados e compilados no Ministério da Justiça.
Um dos bons exemplos nesse sentido é Santa Catarina. No ano passado, metade dos 295 municípios não registrou um único caso de homicídio. Desde 2017, o estado reduziu o número de assassinatos em 47% e o de latrocínios em 84%. A taxa de homicídios por 100 000 habitantes é de 6,78, a segunda menor do país (atrás de São Paulo) e comparável à dos Estados Unidos. A Polícia Civil local alcançou uma marca histórica, com 80% dos homicídios elucidados, desempenho semelhante aos de Canadá e Austrália. “Os crimes acontecem e não ficam esquecidos”, diz o delegado-geral, Ulisses Gabriel. Como Santa Catarina, outros estados tiveram avanços consistentes, entre eles Distrito Federal, Goiás, Rio Grande do Sul, Pará e Espírito Santo (veja o quadro). Em comum, todos tiveram quedas acima da média nacional em mais de um dos principais crimes.
Nenhum desses estados inventou a roda. O êxito é fundamentado em ações que deveriam ser básicas, como integrar as diversas forças de segurança e aperfeiçoar a análise das estatísticas para definir locais de maior criminalidade e vulnerabilidade social e planejar melhor as intervenções. Alocar recursos para a compra de armas e veículos e contratação de pessoal é outra ação primordial, assim como testar tecnologias modernas, como monitoramento por vídeo com inteligência artificial e equipamentos para aprimorar o trabalho de perícia. É fundamental ainda traçar estratégias para minar o crime organizado, separando líderes presos ou identificando (e impedindo) o financiamento das facções. Também é relevante o trabalho de apreensão de armas e drogas, esta a maior fonte de dinheiro dessas falanges e combustível que alimenta a espiral da violência no país.
A ofensiva contra a criminalidade varia muito dependendo do perfil dos governantes. Goiás, por exemplo, governado por Ronaldo Caiado (União Brasil), à direita no espectro ideológico, baixou os indicadores a partir do investimento pesado em armas, viaturas e agentes de segurança e um policiamento ostensivo, inclusive no campo, com tropas especializadas e georreferenciamento de propriedades rurais. “Até o roubo de gado caiu”, celebra o secretário de Segurança Pública, Renato Brum. Ex-comandante-geral da PM, ele reconhece o efeito colateral da política de confronto: no ano passado, 517 suspeitos foram mortos, o que coloca a polícia goiana como a quarta mais letal do país, à frente até de São Paulo, o estado mais populoso (que teve 504 mortos). “Aumentou, de fato, mas porque retomamos o controle”, justifica.
Não é apenas Goiás que enfrenta o desafio de equilibrar os esforços de prevenção e repressão, sem fazer com que o combate ao crime atropele direitos individuais e aumente a barbárie nas ruas. Jorginho Mello (PL-SC), Ratinho Junior (PSD-PR) e Tarcísio de Freitas (Republicanos-SP) seguem o discurso de tolerância zero contra a bandidagem e são frequentemente criticados por abusos. Para a socióloga Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, é necessária uma abordagem realista, deixando de lado o populismo. “Um programa estruturado exige metas conjuntas, bônus, ações compartilhadas e visão de longo prazo. É preciso ainda segurar a pressão pela ‘Rota na rua’ enquanto resultados não chegam”, diz.
Há governantes que tentam somar ao policiamento rigoroso algumas abordagens menos ortodoxas. É o caso do programa RS Seguro, lançado em 2019 por Eduardo Leite (PSDB). Com quatro eixos principais (combate ao crime, políticas sociais preventivas e transversais, qualificação do atendimento ao cidadão e sistema prisional), a ação é coordenada pelo gabinete do governador, que faz reuniões mensais para monitorar os resultados. “É preciso acompanhar, se possível, em tempo real. E com um tripé baseado em três ‘is’: integração, investimento e inteligência. Polícia na rua só não basta”, diz o tucano. Outro ponto simbólico é a modernização do sistema prisional. O governo demoliu a Cadeia Pública, conhecida como Presídio Central, uma masmorra dos anos 1950 no coração de Porto Alegre, que foi classificada pela CPI do Sistema Carcerário, em 2008, como a “pior prisão do país”. Com esgoto a céu aberto, celas sem trancas e livre interação entre os presos, o local era uma “escola do crime”, segundo Leite, que vai erguer outro presídio no local, mais moderno e com maior controle dos detentos. “Temos de aprimorar a inteligência para combatermos o crime organizado dentro e fora da cadeia, senão é enxugar gelo”, afirma.
O cerco ao crime combinado ao olhar social mostra que pode haver bons resultados até em locais que eram símbolos de terra violenta. É o caso do Pará, que nos últimos anos enfrentou traficantes de drogas nas fronteiras, pistoleiros, garimpeiros, grileiros e desmatadores. A taxa de homicídios ainda é alta (30,11), mas era de 54,68 em 2017. Parte da queda se deve a ações do governo Helder Barbalho (MDB), como o Polícia Mais Forte, focado na presença da PM nas ruas e no investimento em inteligência e tecnologia. Também transferiu líderes de facções e instalou câmeras em presídios e nos uniformes dos policiais penais. Por outro lado, investiu no Usinas da Paz, complexos que oferecem serviços de saúde, documentos, capacitação profissional, esporte e lazer. Segundo o governo, a violência nos bairros onde o projeto foi implementado caiu 77%.
Outro investimento comum a esses estados é o uso de tecnologia para prevenção e investigação de crimes. Um exemplo é o Espírito Santo, onde o governo faz leitura facial dos presos, usa inteligência artificial para ler placas de veículos e trabalha com microprocessadores balísticos capazes de identificar de que arma saiu determinado projétil. Um dos programas, o Cerco Inteligente, se transformou numa vasta rede de câmeras instaladas nas principais vias e cidades capixabas. Somada a outras ações iniciadas em 2011, o estado conseguiu sair da segunda posição de mais violento para a 18ª. Governador no terceiro mandato, Renato Casagrande (PSB) diz que planos de longo prazos são fundamentais. “A continuidade da política é que faz a diferença. Não existe bala de prata na segurança pública”, defende.
A aposta na priorização do uso da tecnologia no combate à criminalidade faz parte também da política adotada no Distrito Federal. Unidade da federação com a segunda maior concentração de policiais (6,6 por 1 000 habitantes, atrás do Amapá), o DF tem 500 dispositivos móveis (como um bip) para mulheres vítimas de violência e que estão sob medida protetiva, e 500 tornozeleiras que são colocadas no agressor. O aparelho da vítima pode ser usado para acionar a polícia quando o limite de proximidade não é respeitado. Outra medida foi distribuir um sensor, menor que uma chave de carro, aos comerciantes do Conic, tradicional centro de compras, que pode ser usado para acionar diretamente a PM em caso de algum risco à segurança.
Os estados mais populosos da federação conseguiram avanços, só que mais pontuais, no período pesquisado por VEJA. São Paulo reduziu homicídios (26%), latrocínios (54%) e roubo e furto de veículos, mas essas quedas ficaram abaixo da média nacional — -30%, -59% e -33%, respectivamente. O uso de câmeras corporais pela PM desde 2020 fez a letalidade policial cair nos dois anos seguintes. Ela voltou a crescer em 2023, já na gestão Tarcísio de Freitas. Crítico do uso dos aparelhos, ele se viu pressionado após dezenas de mortes em operações recentes e, na quarta 24, comprometeu-se com o STF a ampliar o uso dos equipamentos — hoje, são 10 125 em metade dos 510 batalhões. Os novos modelos farão leitura de placas de veículos e terão recursos de áudio para que policiais peçam ajuda em operações.
Estado que se tornou emblema nacional do avanço da criminalidade, o Rio de Janeiro continua na direção contrária à dos bons exemplos: registrou alta dos homicídios em 2023 (7%) após um período de baixas e o recrudescimento das ações do crime organizado não aponta para um local mais seguro — não à toa, a Força Nacional de Segurança atua no estado desde outubro de 2023. Em Minas Gerais, onde o governador Romeu Zema (Novo) também empunha a bandeira da segurança, o roubo e furto de veículos teve queda expressiva desde 2017 (48%), mas crimes como homicídio e latrocínio recuaram menos que a média nacional. O Paraná baixou o roubo e furto de veículos acima da média (49%) e obteve bons números na apreensão de armas e drogas. Nos casos de homicídios e latrocínios, no entanto, as reduções não foram tão expressivas.
As políticas de segurança pública sempre foram uma atribuição dos Executivos estaduais, mas nos últimos anos a pressão vem batendo à porta do governo federal. O Congresso transformou o tema em uma de suas prioridades, com a bancada à direita, majoritária, avançando na aprovação de medidas punitivistas, como a do fim da chamada “saidinha” dos presos. Escalado para representar o Palácio do Planalto nesse debate, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, afirmou nos últimos dias que a criminalidade adquiriu um caráter transnacional, ressaltando que o poder central não tem os instrumentos legais para enfrentar o problema. Ele defendeu a aplicação compulsória de parte do Orçamento em segurança, como já ocorre com saúde e educação. Também disse ser preciso reorganizar o papel de cada ente federativo, para que a União possa traçar diretrizes para o país. Não será fácil. A discussão corrente é no sentido de desvincular as verbas obrigatórias até para saúde e educação. Os estados também devem resistir a esse tipo de mudança. De qualquer forma, é um avanço que Lewandowski tenha aberto essa discussão. “Essa repactuação entre os entes é essencial”, diz Renato Sérgio de Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Os dados mais recentes mostram que o Brasil avança a passos muito lentos. A taxa de homicídios é de 18,53 (era de 18,57 em 2017), o que coloca o país no patamar do Haiti. Não por acaso, pesquisa Datafolha de abril mostrou que dois em cada três brasileiros não se sentem seguros. A constatação repercute na avaliação dos governantes. Levantamento da Quaest apontou que 42% dos entrevistados acham ruim ou péssima a atuação de Lula nessa área. Na esteira da escalada da criminalidade, não param de surgir discursos demagógicos tentando vender a ideia à população assustada de que é possível resolver um problema complexo com discursos demagógicos e soluções simples. Os bons exemplos de ações adotadas por alguns governos estaduais mostram que essa batalha só pode começar a ser vencida com políticas inteligentes, continuadas e coordenadas. É uma lição que está mais do que na hora de o país aprender.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2024, edição nº 2890