Para um capitão que chegou longe com a estratégia de pôr fogo em sua própria trincheira, não há nada como tempos incendiários. No Exército, Jair Bolsonaro enfrentou um processo no fim dos anos 80 devido a um plano de plantar bombas em quartéis para chamar a atenção para a insatisfação salarial da tropa, conforme revelou VEJA na época (ele acabou sendo absolvido pelo Superior Tribunal Militar em um julgamento controverso). Ao trocar a farda verde-oliva pelo terno de parlamentar, manteve o comportamento belicoso e, no Palácio do Planalto, vive de crise em crise, boa parte delas gerada pelo próprio governo. Nas últimas semanas, um conjunto de forças externas contribuiu para alimentar a confusão, com uma marcha em direção ao STF de encapuzados de tochas na mão, enfrentamentos nas ruas de grupos contra e pró-bolsonaristas, discursos sobre intervenção militar e reação exagerada do mais veterano magistrado da Suprema Corte comparando a situação do Brasil à da Alemanha nazista. Além de pôr em risco a jovem e ainda frágil democracia do país, essa tempestade perfeita de tumultos só favorece quem gosta de um ringue permanente de confrontos e desvia o foco do combate ao principal inimigo do momento, o novo coronavírus, que já deixou um rastro de mais de 30 000 mortes.
As recentes manifestações de rua contra o bolsonarismo inauguraram uma nova e barulhenta fase da vida política nacional. Sem que fosse respeitado o isolamento social, torcedores organizados de times de futebol e torcidas “antifascistas” saíram de casa a pretexto de defender a democracia, mas se envolveram em brigas com os apoiadores do presidente e a polícia em São Paulo e no Rio de Janeiro. Em Curitiba, black blocs provocaram vandalismo. Casos que contribuíram para o acirramento político. “Pusemos na balança: vamos ficar sentados esperando morrer de Covid-19 ou ficar desempregados, ver a ditadura voltar e não fazer nada?”, justifica Chico Malfitani, do time de fundadores da corintiana Gaviões da Fiel, um dos grupos que foram à luta. Nada de bom pode sair de um embate entre bolsonaristas radicais e integrantes de bandos acostumados a barbarizar dentro e fora dos estádios. Mais preocupante ainda é o fato de que novos protestos de organizadas estão marcados para o próximo domingo, 7, reforçados pela adesão de movimentos sociais da Frente Povo Sem Medo, chefiada pelo ex-candidato à Presidência pelo PSOL Guilherme Boulos. Em um raro momento de lucidez, o presidente conclamou seus apoiadores a permanecer em casa, mas é difícil prever com que intensidade a ordem será obedecida, a começar pelo próprio Bolsonaro, que se habituou nos últimos tempos a prestigiar manifestações de simpatizantes a favor da volta da ditadura militar e contra instituições como o STF e o Congresso.
O rastilho de pólvora de uma oposição nas ruas lembra o início do fenômeno de junho de 2013, movimento que começou com protestos pequenos contra o aumento das passagens de ônibus e, aos poucos, tomou corpo e se alastrou pelo país, com uma agenda de reivindicações amplas na linha “contra tudo o que está aí”, ausência de lideranças partidárias e quebradeiras promovidas por black blocs. No caso das agitações recentes, o temor de que se repitam os conflitos com a polícia preocupa outros grupos que começaram a se organizar fora das ruas, na tentativa de construir uma frente plural de oposição ao bolsonarismo. “Darão pretexto a uma medida de força do governo”, alerta o advogado Antonio Cláudio Mariz de Oliveira, um dos articuladores do manifesto de juristas Basta!, um dos movimentos em defesa da democracia que brotaram nos últimos dias. Outro é o Estamos Juntos, que em uma semana atraiu mais de 270 000 apoiadores de orientações políticas variadas, como o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta (DEM), os cantores Caetano Veloso e Lobão, o tucano FHC, o petista Fernando Haddad, o youtuber Felipe Neto e os economistas Armínio Fraga e Luiz Carlos Bresser Pereira. “Com o fantasma do autoritarismo inacreditavelmente nos assombrando de novo, temos de nos movimentar em defesa da democracia”, disse a VEJA Luciano Huck, signatário e possível presidenciável para 2022. O texto cita as “Diretas já” como um exemplo, mas acertadamente decidiu não promover atos de rua por causa da pandemia. Com mais de 60 000 assinaturas, o Basta! também preza pela diversidade ideológica, com Miguel Reale Júnior, um dos autores do pedido de impeachment de Dilma Rousseff, e José Eduardo Cardozo, que a defendeu, o criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, crítico da Lava-Jato e defensor de réus graúdos, e o ex-procurador Carlos Fernando Lima, um dos líderes da operação, além de quatro ex-ministros do STF: Sepúlveda Pertence, Cezar Peluso, Eros Grau e Nelson Jobim.
Manifestações organizadas da sociedade civil na defesa da democracia são bem-vindas, ao contrário do estímulo à confrontação nas ruas, que, além de desaconselhável, é desproporcional ao tamanho do “inimigo” do outro lado da trincheira das vias públicas. Embora barulhentos e especializados em lances teatrais para chamar atenção, alguns grupos pró-governo não passam de bandos de gatos-pingados, como a turma comandada pelo militar da reserva Paulo Felipe. Ele coordena há mais de trinta dias um acampamento na Praça dos Três Poderes que pede “intervenção militar com Jair Bolsonaro”. Nas últimas semanas, Felipe começou a fazer apelos para que aparecesse mais gente — sem sucesso. Do outro lado da Esplanada, a ativista Sara Winter não reuniu nem trinta pessoas contra o STF.
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Clique e AssineO clima de confronto, os discursos e as referências estéticas dos extremistas põem o Brasil em uma espécie de túnel do tempo, trazendo à tona momentos desagradáveis da história. No caso da recente marcha em direção ao Supremo, as máscaras e tochas usadas no ato trouxeram um inevitável — e lamentável — paralelo com os supremacistas brancos nos Estados Unidos. Na confusão recente ocorrida em São Paulo, bandeiras ucranianas envergadas pela extrema direita do país do Leste Europeu foram desfraldadas por bolsonaristas. O presidente sempre alimenta esse déjà-vu de tempos autoritários com louvações à ditadura e a torturadores. Na sua mais recente contribuição, ocorrida no domingo passado, 31, acenou a manifestantes montado em um cavalo, emulando os gestos do general Newton Cruz, que por ordem do ditador João Baptista Figueiredo cavalgou por Brasília contra as manifestações das “Diretas já”. “Vivemos uma época de grande confusão ideológica e ressignificação de conceitos”, afirma o cientista político italiano Fabio Gentile, da Universidade Federal do Ceará, que estuda o neofascismo.
Com o acirramento do clima de animosidade no país, felizmente alguns bombeiros entraram em ação para amenizar a tensão. Um dos focos da ação foi o STF, de onde partiu a comparação do Brasil com a Alemanha nazista, feita justamente pelo mais veterano membro da Corte, Celso de Mello, o mesmo magistrado que, a contragosto do governo, autorizou a liberação quase na totalidade do vídeo da célebre reunião ministerial do dia 22 de abril, recheada de palavrões e de ataques a instituições. Na urgente missão de paz, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, foi a São Paulo pedir ao ministro do STF Alexandre de Moraes que apare as arestas com o presidente. Ladeado por Azevedo e pelos generais Walter Braga Netto e Luiz Eduardo Ramos, todos ministros, Bolsonaro acompanhou em silêncio os catorze minutos da posse de Moraes como juiz do Tribunal Superior Eleitoral. A presença na solenidade na terça-feira 2, precedida por uma conversa reservada entre o presidente e o ministro, foi calculada. Moraes tem nas mãos a sensível investigação que mira bolsonaristas propagadores de fake news — inclusive filhos do presidente. Uma decisão específica acendeu o sinal de alerta: a quebra do sigilo de empresários englobando o período da campanha de 2018. A eventual descoberta de que possa ter ocorrido financiamento ilegal na disputa seria explosiva para o governo.
O sucesso da atuação dos bombeiros para esfriar ânimos e hastear uma bandeira branca depende muito do sempre imprevisível comportamento de Bolsonaro. Na quarta-feira 3, ele já chamou os manifestantes de oposição de “terroristas” e “marginais”. Está no DNA do presidente o flerte com práticas autoritárias e a necessidade de criação de um inimigo — e é aí que mora o perigo. Bolsonaro é pródigo em exemplos assim, como a declaração de dias atrás em que ameaçou não acatar decisões que considera absurdas da Justiça. Na eleição, o vice Hamilton Mourão aventou a ideia de um autogolpe para conter uma situação de anarquia. Isso para não falar das incontáveis vezes que os filhos de Bolsonaro falaram em rompimento institucional. “Raramente os autoritários de hoje tomam o poder por meio de um golpe militar. Eles são eleitos e alteram eleições e instituições democráticas para ajudá-los a permanecer no cargo”, diz a historiadora Ruth Ben-Ghiat, especialista em autoritarismo da Universidade de Nova York. Para ela, cultivar o caos é uma arma desses governantes. “Manter as pessoas no limite é uma estratégia para exaurir a sociedade civil e deixá-la indefesa.” Luciana Tatagiba, cientista política da Unicamp, lembra que negociações institucionais pacificam os conflitos. “Se as instituições estão fechadas ao diálogo, perde-se a oportunidade de buscar soluções”, afirma.
Militares da cúpula do Exército definem o clima em Brasília como “um verão que começa a esquentar um pouco mais”. A turma da caserna nunca topou muito no governo com a ala mais ideológica do bolsonarismo, mas cerrou fileiras com o presidente nos últimos tempos ao enxergar em movimentos de outras instituições uma tentativa de esvaziar os poderes do capitão. Daí vieram reações mais inflamadas como as do general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional do Palácio do Planalto. Ao se referir à possibilidade de apreensão do celular do presidente no curso das investigações da suposta interferência na PF, Heleno soltou uma nota classificando o ato de “inconcebível” e “inacreditável” (o pedido feito por parlamentares ao STF e encaminhado pela Suprema Corte à PGR acabou sendo negado). Apesar de algumas bravatas, o “verão mais quente” ainda está longe de inflamar a tropa, como aponta o ex-ministro e general Santos Cruz: “Se os poderes não funcionam da melhor maneira, que se aperfeiçoem e se harmonizem. As Forças Armadas não têm nada a ver com isso”.
Espera-se que todos os atores desta história entendam a gravidade da situação. Não precisamos de enfrentamentos desnecessários nem de manobras de bastidores que alimentem uma ruptura institucional. O STF e o Congresso, ainda que tenham sido provocados de diversas maneiras, precisam dar exemplos de maturidade diante de um quadro tão preocupante — sem vaidades nem desejos de poder. Afinal de contas, além da efervescência política, estamos no meio de uma pandemia e de uma recessão econômica. O presidente, por sua vez, precisa finalmente entender o seu papel nisso tudo. Com sua postura bélica, enxergando conspirações e inimigos por toda parte, Bolsonaro vem colocando o Brasil em cima de um barril de pólvora (e muitos estão riscando fósforos ao lado dele). Mas ainda há tempo para desanuviar o ambiente. Até para o capitão que fez carreira pondo fogo na trincheira, é possível buscar o entendimento, honrar o cargo que ocupa e se dedicar ao que é fundamental: governar o Brasil. Ninguém precisa de mais confusão.
Publicado em VEJA de 10 de junho de 2020, edição nº 2690