Pesquisa mostra que brasileiro subestimou a pandemia e culpa Bolsonaro
Levantamento indica que população acha que sua situação financeira vai piorar e teme morrer — embora ainda acredite em uma melhora nos próximos meses
Riobaldo acordava assustado em meio à madrugada, pressentindo que algum perigo se avizinhava. “A vida é ingrata no macio de si”, reflete ele. “Mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero.” Tal passagem de Grande Sertão: Veredas transcende o universo mágico de Guimarães Rosa e serve para resumir a quase inquebrantável capacidade de resiliência do povo brasileiro. Nos tempos atuais, a terrível agrura que tira o sono de todos é o vírus invisível. Ele se espalha cada vez mais rápido e sufoca até matar, provocando uma tragédia sem precedente. O Brasil ultrapassou nesta semana o número de 300 000 mortos pela Covid-19 e, pela primeira vez, a pandemia vitimou mais de 3 000 pessoas em um só dia. O sistema de saúde nacional entrou em colapso e praticamente não há vagas em UTIs. Apesar disso, mesmo à beira de um ataque de nervos por terem subestimado o potencial de estrago do inimigo e diante de autoridades que custam a se entender na tomada de medidas urgentes (veja reportagem na pág. 24), as pessoas não perderam o otimismo e a fé.
É essa mistura de medo e de esperança que aparece com nitidez em um levantamento do Instituto Paraná Pesquisas feito com exclusividade para VEJA sobre os sentimentos da população neste momento. Realizado entre os dias 12 e 16 de março, com 2 334 entrevistas no país, o trabalho mostra que a desolação com a situação atual do Brasil nunca foi tão flagrante. Mas, ainda assim, existe uma certa esperança que leva a crer que o futuro poderá ser diferente. Há um empate técnico entre aqueles que acreditam na melhora da situação sanitária nos próximos meses (39,5%) e os que creem na piora do desastre (41,5%).“Esse é o estilo brasileiro de dizer que ‘a vida continua’ ”, diz o antropólogo Roberto DaMatta.
Há, de fato, motivos para a sensação de que nem tudo está perdido. Apesar de atrasado, o cronograma da vacinação deverá ganhar tração a partir de abril, quando o Ministério da Saúde receberá pelo menos 47 milhões de doses. Enquanto o cenário não muda, o brasileiro passa os dias remoendo seus medos e inseguranças com o presente. No levantamento, 80,4% das pessoas dizem que a pandemia dura mais do que imaginavam e 73,4% afirmam que o número de mortos é maior do que o esperado. Os dados mostram que o brasileiro claramente subestimou os perigos da Covid-19. Tanto é assim que o medo de perder alguém querido para a doença atinge 48% das pessoas, temor muito maior do que o de ficar sem emprego (7,8%). “Ficamos sem a noção de tempo, a possibilidade de fazer planos, de ter projetos. O maior valor é estar vivo”, afirma a psicóloga Maria Helena Pereira Franco, coordenadora de um laboratório de estudo e atendimento ao luto da PUC-SP.
O resultado não se traduz apenas em desamparo, mas em revolta contra os gestores encarregados da condução da crise. Pela primeira vez, 20% dos brasileiros atribuem o cenário crítico da pandemia a todos os políticos com cargos eletivos (o índice era de 6% em maio de 2020, obtido em pesquisa equivalente). Também cresceu a responsabilização de Jair Bolsonaro pelo descontrole da doença. O porcentual atingiu 29,4% contra o presidente, muito superior aos 11,2% que culpam os governadores pelo caos sanitário. “Bolsonaro conseguiu num primeiro momento passar a culpa aos governadores, mas agora isso não ocorre de forma tão óbvia. O quesito da recuperação econômica vai na conta do presidente. O responsável por emprego e renda no Brasil é ele, não o governador e o prefeito”, diz Matias Spektor, professor de relações internacionais da FGV.
A mesma pandemia que fez da economia um cenário de terra arrasada mexeu com os dois extremos da linha do tempo da vida: o nascimento e a morte. Houve queda considerável no primeiro e aumento brusco no segundo. Nove meses depois que a pandemia já estava instalada no Brasil, foi possível constatar: casais optaram por não ter filhos neste período conturbado. Em janeiro, o número de registros de nascimentos atingiu o menor patamar desde 2002, quando começou a série histórica da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil). Foram computados 207 901 nascimentos, um número 15% menor que o registrado no mesmo mês do ano passado. “Vai demorar para que seja retomado o ritmo de antes da pandemia. Até lá, essa queda representará uma ruptura na pirâmide etária e impactará o mercado de trabalho e a população economicamente ativa”, afirma Gustavo Fiscarelli, presidente da Arpen-Brasil. Por outro lado, nunca tantas mortes foram contabilizadas — quase 1,5 milhão entre março do ano passado e fevereiro de 2021, um triste crescimento de 31% de óbitos em relação à média histórica para esse mesmo período.
Os cartórios também detectaram outro reflexo da pandemia na configuração das famílias. Ficaram em lados opostos na gangorra as uniões e os divórcios. Enquanto o primeiro cai, o segundo cresce. De março a dezembro de 2019, 816 226 casamentos foram registrados. No mesmo período do ano passado, o número caiu cerca de 30%. Na outra direção, o total de divórcios tem crescido — passou de 62 969 entre março e dezembro de 2019 para 64 071 no mesmo período do ano passado. É um desafio manter um relacionamento em meio a um ambiente altamente estressante. Retrato das preocupações que tiram o sono dos brasileiros (aliás, houve um aumento de 55% nos casos de insônia de um ano para cá, segundo o Instituto do Sono), as buscas no Google por termos como “UTIs” explodiram nas últimas semanas.
Enquanto o Brasil cresce de forma descontrolada nas curvas da pandemia, descolando-se do resto do mundo, despencou no ranking internacional que mede o bem-estar mental de uma nação. O instituto Gallup, em parceria com a ONU, elaborou recentemente uma nova versão do Relatório Mundial da Felicidade, que leva em conta questões subjetivas, como o PIB per capita, apoio social, expectativa de vida e ausência de corrupção. A infelicidade subiu em todo o mundo, mas a queda do Brasil foi drástica. O país perdeu doze posições e agora está na 41ª colocação. Paira sobre as pessoas um estado de “crise crônica” que acarreta sintomas físicos, segundo levantamento da NOZ Pesquisa e Inteligência, em parceria com o Instituto Bem do Estar. Cerca de 40% têm mais enxaquecas, 31% têm problemas gastrointestinais e 19% sentem falta de ar. “A pandemia tirou os véus da sociedade, que já vivia uma pandemia de saúde mental”, declara a fundadora do Instituto Bem do Estar, Isabel Marçal. A fé acaba sendo o refúgio natural diante da sensação de desamparo (quase 60% dos entrevistados do Paraná Pesquisas relataram que começaram a rezar mais nos últimos tempos).
Não há mesmo como escapar indiferente ao impacto da doença na sociedade. Ela já se refletiu em alterações na rotina (82,4% das pessoas do levantamento dizem que mudaram de hábitos), e uma parte disso pode ser creditada ao aspecto positivo do chamado “novo normal”, a exemplo dos esquemas de trabalho híbridos e da migração de pessoas das grandes cidades para o interior, o que produz não apenas melhora de qualidade de vida nas famílias, mas também abre uma perspectiva de desafogamento das maiores metrópoles. Para o Brasil, o saldo da crise vai exigir grandes esforços de retomada das atividades e superação de estatísticas como a do índice recorde de desemprego, que pode chegar a quase 15%, de acordo com estimativa recente da Confederação Nacional da Indústria.
Tamanho mal-estar social foi registrado na epidemia de gripe espanhola que o Brasil enfrentou entre 1918 e 1920. Somente São Paulo perdeu 1% da população da época em um período de aproximadamente seis semanas. A partir de reportagens da imprensa é possível ter uma noção de como aquela epidemia afetou diretamente a vida dos brasileiros. “Há um recorte muito ilustrativo em que o médico Plácido Barbosa pede às pessoas para controlarem o medo, porque aquilo poderia afetar a imunidade contra a gripe”, diz a historiadora Christiane Maria Cruz de Souza, do Instituto Federal da Bahia (IFBA). A pesquisadora Gisele Sanglard, da Fundação Oswaldo Cruz, acrescenta que as charges dos periódicos também apresentavam situações em que a morte rondava o cotidiano das pessoas. “Uma das mais representativas é a de uma dançarina espanhola cujo parceiro é a morte, vestida de preto e com um cajado em punho. Assim como ocorreu agora, os bailes tiveram de ser suspensos porque a morte estava ali”, afirma. Uma vez vencida a crise sanitária, os relatos mostram que o Rio de Janeiro sediou “o maior Carnaval de todos” em 1919, com marchinhas e carros alegóricos que faziam alusão ao fim da epidemia que tanto tinha castigado a cidade. Por enquanto, resta aos brasileiros respeitar as medidas de segurança e aguardar que o Ministério da Saúde acelere o programa de vacinação contra a Covid-19. De volta a Guimarães Rosa, ficam as palavras de consolo da personagem Diadorim ao protagonista da trama: “Riobaldo, tem tempos melhores. Por ora, estamos acuados em buraco”.
Publicado em VEJA de 31 de março de 2021, edição nº 2731