Pesquisa revela evidências de habitantes na Amazônia há mais de 1500 anos
Grupo de pesquisa brasileiro descobriu indícios de pelo menos 24 sítios arqueológicos intocados, escondidos sob as copas das árvores
Desde sempre, a Amazônia foi tratada como uma floresta virgem, nunca antes habitada. É o que explicaria sua abundante biodiversidade — celebrada pela ciência e pelos ambientalistas. Afinal, como prosperariam fauna e flora tão ricas se ali tivesse havido comunidades, seres humanos em atividade extrativista e de caça? Essa ideia começou a ser refutada nos anos 1980, quando novas pesquisas mostraram que aquelas terras teriam sido ocupadas, há pelo menos 12 000 anos, por populações originárias. Faltavam, contudo, evidências que permitissem medir a amplitude dessa ocupação.
A história começa a ser recontada. Um grupo de pesquisa brasileiro descobriu indícios de pelo menos 24 sítios arqueológicos intocados, escondidos sob as copas das árvores. A revelação foi feita em trabalho publicado na revista científica Science. Os responsáveis pelo levantamento, Vinicius Peripato, doutorando do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e seu orientador, Luiz Aragão, tiveram acesso a dados de um sensor remoto capaz de utilizar lasers para fazer uma imagem em 3D da mata. A princípio, a tecnologia fora empregada pelo governo para estimar a biomassa da Amazônia, mas serviu, agora, para revelar detalhes da geografia, em movimento engenhoso. Grupos exploratórios demorariam décadas para percorrer o local e imagens de satélite restringiriam o estudo a áreas peladas. Como os dados de sensoriamento remoto cobrem apenas 0,08% da área total da floresta, haveria uma lacuna intransponível. Com a ajuda de modelos matemáticos e apoio de um grupo de 200 pesquisadores estrangeiros, contudo, foi possível cobrir o espaço de investigação que faltava. Segundo a análise, algo entre 10 000 e 23 000 modificações semelhantes às duas dezenas identificadas podem estar espalhadas pela região. É revelação fascinante.
Habilidosos em manipular a terra, os povos que supostamente viveram na Amazônia, há cerca de 1 500 anos, fizeram alterações no solo e em correntes de água cujos rastros são visíveis até hoje. São cerca de 900 valas, geoglifos (grandes desenhos no verde que só podem ser identificados do alto) e lagoas. Os novos resultados revelam que a ocupação indígena foi mais extensa do que se imaginava. Além de desvendar o potencial tesouro arqueológico sob a serrapilheira, o trabalho também mostrou que a paisagem foi profundamente moldada por esses grupos ancestrais — os cientistas verificaram que ao menos 53 espécies de plantas domesticadas, como a seringueira, o murumuru, a castanheira e o cacau, estão associadas aos novos sítios arqueológicos. “As espécies estão intimamente relacionadas com a história humana”, disse a VEJA Carolina Levis, ecóloga do Instituto Nacional de Pesquisas na Amazônia (Inpa) e coautora do estudo.
O ruidoso anúncio dá as mãos a uma sucessão de achados que, nas últimas décadas, autoriza a repensar o passado da Amazônia. Pedaços de cerâmicas e esculturas de pedra, por exemplo, foram encontrados ao longo de todo o território. Um outro trabalho, publicado há poucas semanas, sugere que a terra preta, afeita a chão extremamente fértil e que se distribui por toda a floresta, é resultado não da aleatoriedade da natureza, mas da presença dos povos ancestrais. Essa visão já havia sido contemplada no influente livro do arqueólogo brasileiro Eduardo Góes Neves, Sob os Tempos do Equinócio. Ele diz ter havido cidades sob o dossel tropical, com organizações sociais complexas. Não se sabe contudo, ainda, porque as aglomerações teriam sumido do mapa. “Eram sociedades densas, grandes e complexas que tinham um estilo de vida integrado à floresta”, ecoa Vinicius Peripato, do Inpe. “Saber como viviam pode ser uma ponte que nos traga a um caminho mais sustentável e equilibrado, hoje.”
No Brasil, aliás, o tema caminha entre o STF e o Senado, em torno do “marco temporal”. Trata-se de uma ação jurídica segundo a qual apenas teriam direitos sobre as terras aqueles que já as ocupassem em 5 de outubro de 1988 — dia da promulgação da recente Constituição. O STF disse não, o Senado aprovou e a batata quente está com Lula. Seria um absurdo aprovar o marco, fechar os olhos para o que veio antes, muito antes, e que a inédita investigação confirma. Trata-se, portanto, de usar as respostas da ciência — sim, havia gente na Amazônia e, sim, ela não foi destruída — para crescer o zelo com aquela porção do planeta. “Os indígenas não são uma comunidade homogênea, mas há claros sinais de que as pequenas áreas do território mundial que ainda estão sob jurisdição desses grupos são as mais conservadas e diversas”, disse a VEJA Miranda Massie, diretora do Museu do Clima, em Nova York. Nas palavras do imortal Ailton Krenak (leia na coluna de Cristovam Buarque): “O futuro é ancestral”.
Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2023, edição nº 2863