Em boa companhia
“No início da quarentena, me recusei a ficar sozinho e fui para a casa dos meus pais. Mas resolvi voltar e encarar meus medos. Acabei aprendendo a ficar só e muito bem acompanhado, devorando filmes e livros e ouvindo música sem parar.”
Rene do Amaral, 51 anos, professor de teatro
Aquela sensação de casa silenciosa, vazia, onde o solitário morador vive em seu próprio palácio, com a liberdade no sentido mais pleno, é uma ideia que encanta as novas gerações mundo afora. Tanto assim que a cada ano cresce o número de domicílios com um único residente, fenômeno global impulsionado pela busca da individualidade, uma marca desses tempos. Mas eis que veio a pandemia e abalou os pilares, fazendo com que uma parcela desses seres independentes, agora forçados ao isolamento, se visse pela primeira vez mergulhada na mais pura solidão. Com a rotina social restrita, abriu-se uma fresta para o vácuo, o que obrigou os assolados por essa condição humana a olhar para si mesmos como nunca antes. Desencadeou-se então, para muitos, um processo de autoconhecimento que o poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867) definiu como oportunidade: “Quem não sabe povoar sua solidão também não saberá ficar sozinho em meio à multidão”, escreveu.
O grupo dos que vêm experimentando a solidão na pandemia não é pequeno nem localizado em um ponto específico do globo. Segundo uma pesquisa internacional do Instituto Ipsos, realizada em 28 países com o objetivo de aferir os impactos da crise na vida das pessoas, encontram-se solitários por toda parte. Em nenhum lugar, porém, eles são tão incidentes quanto no Brasil, onde a metade dos entrevistados declarou ser frequentemente acometida por esse sentimento — seguido de Turquia (46%) e Índia (43%). Uma explicação para a dianteira brasileira tem a ver com o perfil expansivo e sociável de seu povo, algo que remete às raízes da própria identidade nacional. “Perder esse contato humano pode acabar desestruturando as pessoas em um país onde ele é tão intenso”, afirma a psicóloga Paula Peron, da PUC de São Paulo. Mais um fator conspira para exacerbar a solidão em uns cantos do planeta e atenuá-la em outros. “Nos países que apresentam uma melhor gestão da pandemia, a população se vê mais amparada, portanto menos solitária”, avalia Marcos Calliari, CEO do Ipsos. É o caso de holandeses e alemães, entre os últimos no ranking dos que se sentem sós (veja o quadro).
Para seguir adiante sem a vida de encontros de antes, seja no trabalho, seja entre amigos, a turma do eu-sozinho começou a traçar estratégias de sobrevivência. Em um primeiro momento, a estudante de arquitetura Júlia Grangeiro, 21 anos, que havia recém-concretizado o sonho de sair da casa dos pais, regressou ao ninho para escapar do isolamento em tempo integral. Conforme a situação se esticava, porém, ela achou que era hora de voltar a seu apartamento, em Copacabana, no Rio de Janeiro. “Sempre me vi preenchida por amizades e a vida social fora de casa, mas, de repente, me senti sem afeto e isso me fez muito mal”, conta Júlia, que, como outros que vivem sós, diz que foi aprendendo a direcionar os ventos a seu favor. Riscou um projeto de reforma para seu imóvel, renovando o quintal, e matriculou-se na natação, uma chacoalhada nos hábitos que ganha escala e faz mover vários setores da economia. Em plena crise, a venda de livros, por exemplo, subiu 20% nos primeiros meses do ano, enquanto a indústria do bem-estar deve crescer 10%, segundo as projeções.
Adeus, tristeza
“Tenho um histórico de depressão, e o isolamento me deixou para baixo. Antes, encontrava conforto nos amigos e nas baladas, e de repente precisei preencher minha vida de outra forma. Reformei o apartamento e comecei a fazer natação. Foi um reencontro comigo mesma.”
Júlia Grangeiro, 21 anos, estudante de arquitetura
A solidão em seu sentido mais profundo e dolorido, aquela que ataca a alma, deve ser combatida com todo o empenho, sustentam os especialistas. Ela está associada a stress, ansiedade, depressão e outros transtornos que avançaram na pandemia. Um estudo recente da University College de Londres, na Inglaterra, indica que uma saída para começar a romper com a angústia do isolamento é buscar o calor humano mesmo a distância, em videoconferências ou no velho e bom smartphone. “A privação da convivência produz no cérebro o mesmo tipo de resposta biológica da falta prolongada de alimentos”, compara a psicóloga Julianne Holt-Lunstad, da Universidade Brigham Young, nos Estados Unidos. O produtor cultural Jomas Monteiro, 50 anos, experimentou na pele a alteração fisiológica desencadeada pelo cenário pandêmico: ficou sem emprego, sem namorada e, com diagnóstico de depressão, brigou para não se afundar no poço da solidão — e conseguiu. “Ingressei em um curso de marketing digital para me atualizar e até pão aprendi a fazer”, orgulha-se da reviravolta.
Ao encarar a solidão e enxergá-la de forma menos pessimista e mais produtiva, as pessoas a transformam em “solitude”, termo de origem anglo-saxã absorvido pelos dicionários da psicologia. Em bom português, é como fazer do limão uma limonada. “A atividade intelectual, a religião, a prática esportiva são maneiras de preencher as lacunas abertas pela ausência do convívio, já que funcionam como uma janela para o mundo exterior”, afirma o psicólogo Rafael Baioni, autor de uma tese de doutorado sobre o tema. Grandes nomes da história egressos das mais diversas áreas deixaram exemplos contundentes de como extrair da solidão combustível para a engenhosidade humana. Precursor do expressionismo, o pintor norueguês Edvard Munch estava solitário e se recuperando da gripe espanhola, no início do século XX, quando arranjou forças para produzir a famosa tela Autorretrato com Gripe Espanhola, inspirado na própria convalescença. Antes dele, em meio a uma epidemia de peste bubônica que tomou Londres no século XVII, William Shakespeare também isolou-se e veio a reaparecer para o mundo com algumas de suas obras-primas (veja este e mais exemplos abaixo).
Uma leitura da obra do psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981) lança luz sobre caminhos para espantar o mal da solidão — e ele passa pela busca de atividades que conversem com “o imaginário e o simbólico” de cada um. Em suma, é achar algo que realmente desperte o interesse e soe renovador. Podem ser iniciativas bastante simples, dentro do plano do possível, como relata o professor de teatro Rene do Amaral, 51 anos, que encontrou nas artes diversão constante e alimento para o cérebro. Ele ouve música, lê uma montanha de livros, vê filmes sem parar —e tem passado bons momentos consigo mesmo imerso nesse rico universo. “A quarentena me provou que cultura e arte são como o oxigênio”, diz ele, que, aliás, já não se sente mais tão só. Na verdade, em sua reclusão, o professor anda é muito bem acompanhado.
Isolados e produtivos
Grandes figuras da história se viram às voltas com a clausura e a solidão e conseguiram converter os tempos sombrios em alimento para a inventividade nas mais diversas áreas
William Shakespeare (1564-1616)
A peste bubônica assolava Londres e o escritor inglês teve de cumprir um rigoroso lockdown. Desse período, deixou como legado para a humanidade as obras-primas Rei Lear e Macbeth
Isaac Newton (1642-1727)
Em outro surto de peste bubônica, o cientista inglês se viu recluso e passava o tempo brincando com uns prismas. Extraiu daí ideias para suas primeiras teorias no campo da óptica
Frida Kahlo (1907-1954)
Após sobreviver a um acidente de ônibus, aos 18 anos, a pintora mexicana não podia nem sair da cama. Descobriu as artes e produziu, deitada, um de seus famosos autorretratos
Com reportagem de Tatiana Abreu
Publicado em VEJA de 28 de abril de 2021, edição nº 2735