A baderna provocada por manifestantes contra o resultado das eleições, movimento que no auge chegou a provocar o bloqueio com caminhões, total ou parcialmente, de mais de 400 pontos de rodovias em todos os estados, já entrou para a história como uma das mais lamentáveis demonstrações antidemocráticas do país. Ela não deverá também ser esquecida tão cedo pela Justiça — nesse caso, felizmente. Na direção contrária ao arrefecimento da balbúrdia, os ministérios públicos estaduais e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aceleraram as investigações destinadas a punir não apenas quem provocou tamanha bagunça, mas, principalmente, os responsáveis por bancar a permanência dos desordeiros nas ruas.
Investigações iniciais apontam para a existência de um esquema de empresários sustentando o movimento, com doações em dinheiro e mobilização por redes sociais banhada em muitas fake news. “É uma grande organização criminosa com funções predefinidas e financiadores. Há várias mensagens com números de Pix e tudo o mais para que as pessoas possam abastecer financeiramente os atos”, afirma o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Luiz Sarrubbo, que coordena uma das frentes de apuração.
A pressão institucional contra os grupos que afrontaram a democracia, inclusive pedindo um golpe militar no país, será ampla. Em conjunto com a investigação do MP de estados como São Paulo, Santa Catarina e Espírito Santo, o presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes, determinou na segunda 7 aos governos estaduais que enviassem em 48 horas as informações detalhadas sobre os veículos que bloquearam rodovias ou vias de centros urbanos, além de determinar o compartilhamento da identificação de lideranças locais dos protestos.
O prazo exíguo dado pelo ministro reforça a percepção de que, dentro das polícias, em particular na PRF, havia um esquema para fazer corpo mole na tarefa de desbaratar as interdições — e até mostrar simpatia com os manifestantes. A luz da suspeita já havia acendido no dia do segundo turno, quando a PRF fez blitze para fiscalizar o transporte de eleitores, sobretudo no Nordeste, onde Luiz Inácio Lula da Silva tinha ampla vantagem contra Jair Bolsonaro. No mesmo dia, Moraes enquadrou o diretor do órgão, Silvinei Vasques, um bolsonarista de carteirinha que pediu votos para o presidente na véspera do pleito.
Cinco dias depois, o presidente do TSE voltou à carga contra o chefe da PRF e pediu um relatório completo de multas aplicadas aos responsáveis pelos bloqueios e das providências tomadas nas manifestações. Silvinei Vasques tornou-se o rosto mais conhecido da má influência do bolsonarismo nas corporações policiais, mas está longe de ser um caso isolado. Em Franca (SP), por exemplo, um quarteto de policiais estaduais fardados prestou continência às pessoas que fecharam a Rodovia Candido Portinari. O absurdo, registrado em vídeo, viralizou nas redes e foi parar na Corregedoria da Polícia Militar.
Esse tipo de problema já representava havia algum tempo uma fonte de preocupação das autoridades. Uma pesquisa de 2021 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que 39% dos agentes de segurança interagem em ambientes bolsonaristas nas redes sociais. Um sinal de alerta veio naquele mesmo ano quando até um comandante da PM de São Paulo — afastado pelo então governador João Doria (PSDB) — conclamou policiais a participar dos atos de 7 de setembro convocados por Bolsonaro. A preocupação com a politização das polícias após esse episódio foi expressa em uma carta assinada por 25 governadores, na qual assumiram o “compromisso de manter as polícias nos trilhos da legalidade”.
Agora, com a derrota de Bolsonaro, tanto Lula quanto os governadores precisarão lidar com a questão. Em São Paulo, o bolsonarista Tarcísio de Freitas fez vários acenos à tropa, como reavaliar o uso da câmera no uniforme, e conta com “a boa vontade” de parte significativa da corporação, que passou anos criticando as gestões tucanas, sobretudo pelos baixos salários. Mas pesa contra a pouca margem para reajustar os vencimentos. No Rio, o desafio é fazer com que a polícia esteja convencida de que, para sua sobrevivência, precisa disciplinar seus integrantes. “Lá, a autoridade é o policial, não a corporação. A ausência de controle é mortal”, diz Renato Sérgio de Lima, diretor do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
No caso da PRF, o governo Lula terá a missão não somente de trocar a cúpula, mas de recalibrar a atuação da corporação, que sob Bolsonaro passou a se dedicar menos às questões de trânsito e mais ao combate ao tráfico de drogas e ao crime organizado — não raro, cometendo excessos. Em maio deste ano, por exemplo, uma operação da PRF na Vila Cruzeiro, no Rio, deixou 23 mortos. Não será uma tarefa fácil enquadrar as forças rebeldes — identificar e punir quem agiu fora da regra ou compactuou com ilegalidades é um bom e necessário primeiro passo nessa direção.
Publicado em VEJA de 16 de novembro de 2022, edição nº 2815