Desde a confirmação da pandemia do novo coronavírus, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) passou a receber uma enxurrada de denúncias, vídeos, fotos e depoimentos que narram situações de instabilidade em diversos presídios brasileiros. São relatos de presos com sintomas de gripe, de detentos supostamente infectados e de agentes carcerários que falam do alastramento da Covid-19 nas prisões. A veracidade dessas informações está sendo apurada, mas os técnicos do órgão estão preocupados com o clima de instabilidade, que pode caminhar para rebeliões, especialmente depois que o CNJ divulgou uma recomendação aos juízes sobre como lidar para evitar a infecção nas cadeias. Assinado pelo ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o documento sugere, entre outras medidas, que os magistrados considerem a possibilidade de antecipar a progressão de regime de condenados do chamado grupo de risco e de pôr em liberdade os que estejam em cadeias superlotadas, sem serviço de saúde ou em condições consideradas insalubres.
No Brasil, há 766 000 presos. Destes, 125 000 cumprem pena em regime semiaberto, ou seja, podem sair durante o dia para trabalhar e retornam para a cadeia à noite. Em tese, eles são potenciais vetores de transmissão da doença e, por essa razão, estão aptos a conseguir o benefício imediatamente. Condenado por corrupção, o ex-senador Luiz Estevão, 70 anos, foi um dos primeiros a receber autorização para deixar o presídio. Até a semana passada ele trabalhava durante o dia numa imobiliária de Brasília e dormia na penitenciária da Papuda. Agora vai cumprir prisão domiciliar em sua casa no Lago Sul, um bairro chique que registra a maior incidência de contaminação por coronavírus na capital. Hipertenso, Estevão compartilhava o espaço com outros dezenove presos. “Éramos prováveis transmissores e ao mesmo tempo possíveis vítimas da Covid-19. Um perigo”, disse o ex-senador a VEJA.
Na terça-feira 31, outro detento famoso ganhou a liberdade. Aos 77 anos, o médium João de Deus foi libertado do Complexo Prisional de Aparecida de Goiânia (GO). Condenado a quase vinte anos por abuso sexual, ele se enquadra no grupo de risco. Além da idade, é portador de insuficiência cardíaca, foi diagnosticado com um câncer gástrico e tem apenas uma parte do estômago. “Eu sabia que Deus não tinha se esquecido de mim. Ele ouviu minhas orações”, disse a VEJA ao deixar a prisão. A orientação do CNJ não precisa ser obrigatoriamente seguida pelos juízes, que devem analisar caso a caso. Isso tem provocado uma profusão de interpretações distintas. Um juiz de São Paulo, por exemplo, negou o pedido de uma detenta argumentando que apenas os astronautas da Estação Espacial Internacional estão protegidos do vírus. Não havia, por isso, justificativa para soltá-la.
Diante da falta de critério, o PCC vislumbrou uma oportunidade. As autoridades interceptaram ligações telefônicas em que integrantes do grupo orientavam advogados da facção a aproveitar a onda da pandemia. Em Franca, no interior de São Paulo, foram liberados mais de vinte integrantes de uma organização criminosa especializada em falsificação de agrotóxicos e lavagem de dinheiro. “Os criminosos têm utilizado problemas como diabetes e asma, que não são incomuns dentro das cadeias, para alegar que correm risco de vida”, diz um promotor sob a condição de anonimato. Por ser genérica demais, a portaria do CNJ foi criticada pelo ministro da Justiça, Sergio Moro. Para ele, as recomendações embutem um golpe no combate à criminalidade organizada. O saidão beneficiou até agora mais de 7 400 presos em todo o país, incluindo, além de Luiz Estevão e João de Deus, o operador do mensalão Marcos Valério, 59 anos, e do ex-deputado Eduardo Cunha, 61 anos, condenado por corrupção na Lava-Jato e recentemente submetido a uma cirurgia.
Publicado em VEJA de 8 de abril de 2020, edição nº 2681