Projeto que permite venda de áreas verdes abre polêmica em Salvador
Disputa envolve moradores e setor imobiliário e põe políticos como ACM Neto na mira
Um projeto aprovado na Câmara de Salvador e sancionado pelo prefeito Bruno Reis (União Brasil) provocou a reação de moradores e entidades da sociedade civil preocupados com a preservação ambiental no município. Na última sessão de 2023, sob protestos nas galerias, vereadores deram aval para a prefeitura alienar, trocar, vender e até doar quarenta terrenos públicos, sendo quinze áreas verdes, o equivalente a 24 campos de futebol. A iniciativa reacendeu preocupação antiga em uma cidade cujo poder público tem longo histórico de flexibilizações no uso do solo para atender ao apetite imobiliário por empreendimentos cada vez mais altos — que nem sempre respeitam as leis ambientais.
O barulho foi amplificado agora, não só pela dimensão da flexibilização, mas também pelo tamanho dos personagens envolvidos na polêmica. Um dos terrenos desafetados (esse é o termo técnico) — uma área verde de 6 699 metros quadrados numa encosta à beira-mar na Baía de Todos os Santos, na região nobre do Corredor da Vitória — coloca em lados opostos figuras proeminentes da capital baiana. A Novonor (ex-Odebrecht) adquiriu um prédio de dois andares ao lado do imóvel desafetado e planeja construir lá um edifício em parceria com um grupo de empresários de curiosa formação do ponto de vista político, que reúne o ex-prefeito ACM Neto, o marqueteiro Sidônio Palmeira, responsável pela campanha de Lula em 2022, e João Gualberto, ex-prefeito de Mata de São João, entre outros. O projeto prevê 24 pavimentos, mas os responsáveis querem adquirir o terreno desafetado para aumentar o potencial construtivo para 36 andares. Essa possibilidade acendeu o alerta de entidades de meio ambiente e urbanismo. “Ali existe uma superposição de legislação que visa a sua preservação”, diz Daniel Colina, presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil na Bahia (IAB-BA).
Se os interessados em tocar o projeto são influentes, a oposição a ele não fica atrás. A empresária Flora Gil, mulher do cantor Gilberto Gil, manifestou preocupação em suas redes. “Pedindo a Deus e à prefeitura que conserve a Mata Atlântica da cidade do Salvador”, postou. Em dezembro, o perfil de Gilberto Gil comentou. “Os lucros são muito grandes, mas ninguém quer abrir mão”, afirmou, repetindo um verso de sua canção Nos Barracos da Cidade. Representantes do grupo interessado no projeto dizem que há interesse em adquirir o terreno, mas só para aumentar o potencial construtivo, sem fazer qualquer intervenção na área protegida.
A flexibilização crescente do uso do solo pôs ACM Neto na mira. Vereadores de oposição dizem que a Câmara e a prefeitura agem para atender aos interesses do ex-prefeito (2013 a 2020) e padrinho de Bruno Reis. Esse foi o quarto lote de desafetações desde 2014, num total de 113 áreas públicas. Em dezembro, Reis afirmou que a prefeitura arrecadou 9 milhões de reais com a venda de quatorze terrenos. Sobre o último lote, diz que os espaços classificados como áreas verdes “não têm mais vegetação nenhuma”. “Não significa que serão vendidos”, disse.
Moradores de diversos bairros, no entanto, preferem se organizar para defender as áreas públicas verdes. Um exemplo é o do Morro Ipiranga, onde um terreno de frente para o mar foi desafetado. O receio é que ocorra ali o que já é visto em seu entorno: a construção de espigões onde antes havia imóveis de no máximo dois pavimentos. Em outros locais, a comunidade tenta impedir a verticalização desenfreada na orla, como vem ocorrendo em Stella Maris e pode ocorrer na Praia do Buracão, no Rio Vermelho, ameaçada de ficar na sombra com a construção de dois edifícios na faixa de areia. O receio não é sem fundamento. Dona de uma das maiores orlas do país, com 105 quilômetros de extensão, a cidade vem experimentando uma mudança drástica em sua paisagem. Os movimentos tentam evitar o que é visto em Balneário Camboriú (SC), onde a construção de espigões encobre o sol na areia e afeta até a circulação de ar na cidade.
A preocupação ocorre mesmo com a possibilidade de troca de comando com a eleição municipal deste ano. O principal adversário de Bruno Reis deve ser o vice-governador Geraldo Júnior (MDB), apoiado pelo governador Jerônimo Rodrigues (PT). Ex-presidente da Câmara, ele atuou diretamente para a aprovação de vários projetos flexibilizando o uso do solo. Um exemplo é o da paradisíaca Ilha dos Frades, que nos últimos vinte anos foi alvo de projetos que chegaram ao ponto de proibir a coleta de mariscos ou a pesca pela comunidade quilombola, enquanto permitiam a construção de edifícios de até quinze pavimentos, pista de pouso, aterramento de zonas de mangue e muros nas praias. Parte dessas leis está suspensa por decisão judicial, mas em dezembro, na mesma sessão em que as desafetações passaram, foi aprovado um projeto que novamente impõe restrições à comunidade marisqueira e pesqueira e flexibiliza o uso do solo. Para a promotora de Justiça de meio ambiente, habitação e urbanismo, Hortênsia Pinho, o poder público vem abrindo mão do controle do desenvolvimento da cidade para atender interesses privados. “Com isso, fere o chamado direito à cidade, que passa pelo conceito de que ela é um bem coletivo, e a torna mais elitista, segregadora e antissocial”, diz. A nova ofensiva imobiliária em Salvador, no entanto, mal avançou e já provoca forte reação — que é justa diante das preocupações ambientais, sociais e urbanísticas que desperta.
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2024, edição nº 2875