Proximidade de Lula com ditaduras amplia desgaste da imagem do Brasil
Condescendência com a fraude eleitoral na Venezuela prejudica ainda mais a posição do país no cenário internacional
Desde a campanha presidencial de 2022, Lula elegeu a participação do Brasil no cenário internacional, ao lado do combate à fome e da pacificação do país, como um dos pilares de seu terceiro mandato. Em contraponto ao ex-presidente Jair Bolsonaro, que comprou brigas com parceiros comerciais e não se constrangeu em ter transformado o Brasil em um “pária internacional”, o petista viajou o mundo no primeiro ano de governo, se colocou como mediador de conflitos distantes da realidade brasileira e semeou entre aliados a campanha de que, com a iniciativa, um dia poderia ser laureado com o Prêmio Nobel da Paz. Seria, na avaliação de auxiliares, uma versão brasileira de Nelson Mandela. Definitivamente, a estratégia não deu certo. Além de não se encaixar no figurino de preso político como o líder sul-africano, ele foi malsucedido em suas duas principais incursões — a guerra da Ucrânia e o confronto entre Israel e o Hamas —, ao assumir posições equivocadas, seguidas por derrapadas retóricas que serviram apenas para desgastar a imagem do Brasil perante algumas das mais importantes lideranças mundiais. A condescendência com a fraude eleitoral na Venezuela, processo ainda em andamento, empurrou as pretensões do mandatário mais alguns degraus abaixo.
Lula foi eleito pela terceira vez com o empuxo da defesa da democracia em contraposição à ameaça autoritária representada pelo seu oponente. Na Venezuela, milhares de pessoas estão presas, milícias governistas intimidam os cidadãos, a imprensa é censurada e são corriqueiras as denúncias de tortura e morte de adversários políticos. Seria natural, portanto, que no papel de líder regional o presidente no mínimo condenasse as atrocidades cometidas no país vizinho. Longe disso. No ano passado, Nicolás Maduro, o líder venezuelano que está no poder há onze anos e acaba de renová-lo por mais seis, esteve no Brasil para uma reunião de chefes de Estado dos países da América do Sul. Recebido com uma deferência singular, o ditador foi aplaudido, subiu a rampa do Palácio do Planalto e se reuniu a sós com o presidente. Depois, questionado sobre o que parecia um impróprio aceno a um autocrata desprezado pelas principais lideranças políticas do planeta, Lula ainda afirmou que a Venezuela tem “mais eleições que o Brasil” e que o conceito de democracia seria “relativo”, deixando mais do que evidente sua opinião sobre o “companheiro Maduro”.
Esse relativismo tem gerado enormes embaraços. Lula foi um dos poucos líderes do continente a não emitir uma única palavra condenando o regime venezuelano. Foi um dos poucos a não se manifestar sobre as fraudes eleitorais, apesar das evidências desconcertantes. E ainda ouviu em silêncio o ditador levantar suspeitas sobre a idoneidade do sistema eleitoral brasileiro. Os auxiliares do presidente justificam essa omissão num suposto pragmatismo político. Ao não tomar partido, Lula estaria se habilitando a mediar a crise. “Não é fácil e bom que um presidente da República de um país dê palpite sobre o presidente e a política de outro país”, disse Lula na quinta-feira 15. O problema é que esse distanciamento não é interpretado apenas como um movimento tático. O venezuelano foi declarado presidente por um conselho controlado por ele próprio, mas os documentos que comprovariam o resultado não foram divulgados. Organismos internacionais confiáveis apontaram a vitória de Edmundo González, o candidato oposicionista. No rastro desse embate, mais de 1 000 venezuelanos foram presos e 23 morreram em protestos contra o governo. Na contramão das grandes democracias, o Brasil fecha os olhos para tudo isso.
No dia da eleição, o assessor especial para Assuntos Internacionais, Celso Amorim, estava em Caracas na condição de observador. De volta, ele disse ao presidente da República que ouviu de Maduro a promessa de que as atas eleitorais que demonstrariam sua vitória nas urnas seriam divulgadas, o que ainda não aconteceu. O ex-chanceler também disse não confiar nos registros de votação que apontaram vitória do oposicionista Edmundo González. Amorim, portanto, não acredita em fraude — aliás, nem ele nem o PT. Horas depois do anúncio de que Maduro havia vencido, a presidente do partido, Gleisi Hoffmann, divulgou nota em que reconheceu a reeleição do ditador e ainda destacou a “jornada pacífica, democrática e soberana” no país. Lula chegou a sugerir que a saída para o impasse político passasse pela convocação de novas eleições, uma espécie de segundo turno, algo como um tira-teima. Estrambólica, ninguém levou a ideia muito a sério. “Hoje qualquer tentativa de associar o governo brasileiro à defesa de normas democráticas e aos direitos humanos será essencialmente fútil em nível internacional”, avalia Eduardo Mello, professor de relações institucionais da FGV.
O fato é que Lula sempre transigiu com certos ditadores e certas ditaduras. Até poucos dias atrás, ele também não endossava críticas à Nicarágua, onde o conceito de democracia, com todo o relativismo, não tem nenhum sentido. O petista já chegou a comparar o presidente Daniel Ortega, que está no poder há dezessete anos, à ex-chanceler alemã Angela Merkel. A única semelhança entre os dois líderes é o primeiro nome de ambos ter seis letras. Ortega é um déspota caricato que também submeteu Lula recentemente a um belo constrangimento ao expulsar o embaixador do Brasil em Manágua pelo simples fato de ele ter faltado à festa de aniversário da Revolução Sandinista. Depois disso, seguindo o protocolo, o Itamaraty expulsou a representante da Nicarágua em Brasília. Do ponto de vista prático, essa troca de “gentilezas” tem pouca ou quase nenhuma relevância. Do ponto de vista político, representou mais um desgaste patrocinado por outro velho amigo do presidente. “O Brasil está perdendo a capacidade de influir nos rumos econômicos, políticos e financeiros da América Latina”, adverte o embaixador Rubens Barbosa. Lula e Ortega se conhecem há mais de quarenta anos, proximidade que já ajudou a alimentou teorias amalucadas durante os governos militares.
Ditaduras são pródigas em inventar histórias para comprometer os adversários. O presidente já sofreu isso na própria pele. Na década de 80, ainda em pleno regime militar, Lula, então presidente do PT, era vigiado pelos órgãos de segurança. Num documento de julho de 1984, o Serviço Nacional de Informações (SNI) pediu à Polícia Federal que descobrisse a finalidade de uma viagem que ele e alguns companheiros do partido fariam a Cuba e à Nicarágua. No relatório, os agentes registraram que o grupo seria recebido por Fidel Castro e Daniel Ortega e tinha como propósito aprender a realizar eleições livres e diretas. O “livres e diretas”, provavelmente, era uma ironia, uma insinuação de que Lula e o PT tinham duas proeminentes ditaduras como fonte de inspiração. Os espiões sugerem até que a informação sobre o objetivo da viagem teria sido repassada pelo próprio petista. É uma óbvia maldade, mas é assim que as ditaduras operam, independentemente se de direita ou de esquerda.
Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2024, edição nº 2906