No intrincado quebra-cabeça das pistas até agora levantadas para identificar o mandante do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes — um inquérito que se arrasta sem desfecho desde março de 2018 —, o nome de Cristiano Girão Matias já pipocou algumas vezes. Nos últimos dias, ele voltou à cena, em dose dupla. Na proposta de delação premiada que tenta selar com o Ministério Público do Rio de Janeiro, Júlia Lotufo, viúva do chefão miliciano Adriano da Nóbrega, teria apontado Girão diretamente como uma das três pessoas que mandaram matar Marielle. O MP estadual, por sua vez, o denunciou como mentor da execução de um casal em 2014 nos mesmos moldes da morte da vereadora e, ao que tudo indica, praticada pelo mesmo assassino de aluguel, Ronnie Lessa, que está preso — conjunto de fatores que, para a polícia, reforça a suspeita de ligação com a morte de Marielle.
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Quem é, afinal, o misterioso Girão, 49 anos, de tão forte presença no submundo do Rio, onde nem mora mais? Sua figura ganhou destaque na política: foi eleito vereador pelo PMN em 2008. A quem perguntasse, ele se definia como “líder comunitário”. Mas a fama verdadeira se fez na surdina, como miliciano de alto escalão na Gardênia Azul, bairro pobre situado entre a temida Cidade de Deus e a abastada Barra da Tijuca, onde ele nasceu, foi criado e formou seu reduto eleitoral. Na Câmara de Vereadores, cumpriu menos de um ano de mandato até se tornar um dos 226 indiciados na CPI das Milícias, instalada no ano em que foi eleito e comandada pelo hoje deputado federal Marcelo Freixo, então do PSOL, de quem Marielle foi assessora — vingança seria o motivo da execução. Condenado, Girão passou oito anos na cadeia. Hoje em liberdade condicional e vivendo em São Paulo, ele nega participação em qualquer crime. “Vivo assombrado. Evito sair e não quero mais voltar ao Rio”, disse a VEJA em entrevista por celular ativado para a ocasião — manobra destinada a driblar grampos e impedir a gravação em vídeo.
Da época pré-prisão, sabe-se que circulava portando fuzil na sua área de atuação, sempre cercado de seguranças, e que foi dono de uma produtora de funk, a G1000, que lançou como cantora uma de suas ex-mulheres, Samantha Miranda. A produtora ainda existe, mas Girão diz que se afastou, embora seja “apaixonado pela cultura funk”. Beneficiado por um indulto em 2017, ele foge dos holofotes. “Sou muito pacato”, garante. Atribui sua presença nas investigações do caso Marielle a “politicagem”, sem mais detalhes. Afirma que vai acionar Júlia Lotufo judicialmente por falsa comunicação de crime. “É muito fácil apontar o dedo. Ou ela está querendo acobertar alguém, ou está querendo se livrar de algo”, especula. Expressa preocupação ao falar das três filhas e chora ao pensar na hipótese de ser preso em breve — coube ao juiz Alexandre Abrahão, da 3ª Vara Criminal do Rio, dar andamento à denúncia sobre o duplo homicídio de 2014 e sua correlação com o de 2018. Girão foi preso na manhã desta sexta-feira, 30.
Mesmo morando em São Paulo, o ex-vereador ainda manteria laços com Leandro Siqueira de Assis, o Gargalhone, que está preso mas segue dando ordens na milícia da Gardênia Azul. A polícia calcula que continuam sendo de Girão entre cinquenta e 100 imóveis na região. “São alugados sem contrato, em um pacote que inclui a cobrança de água, luz e gás”, diz um delegado. Sua atual mulher, Ednalva Marinho Brum, aparece como proprietária de uma autoescola fincada no miolo do bairro. Um dos elos de Girão com Lessa seria o ex-policial civil Wallace Pires, o Robocop, apontado como seu sócio no comando da milícia e que também seria um dos guardiões de parte do arsenal que o suposto matador de Marielle administrava. Pires foi executado a tiros em julho de 2019, em uma provável queima de arquivo, quatro meses depois da prisão de Lessa. Outro elo que aproxima os dois é o fato de Girão ter compartilhado duas das penitenciárias por onde passou com um amigo pessoal de Lessa, o tenente-coronel Cláudio Luiz de Oliveira, acusado de ser o mandante da morte da juíza Patrícia Acioli, em 2011.
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O ex-vereador afirma que o coronel era mero colega de reclusão, sem grande intimidade. Também tem resposta pronta para o fato de ter estado no Rio na época do assassinato de Marielle: foi fazer tratamentos médicos e estéticos. Visitou, inclusive, a Câmara de Vereadores. “Se eu tivesse algum envolvimento no crime, colocaria minha cara lá no registro de entrada? Nem teria saído de São Paulo”, rebate. Na cidade de adoção, Girão conta que não tem amigos e se dedica à confecção de moda praia da mulher. Passa noites costurando e quer fazer o curso de modelagem do Senai. “Meu maior arrependimento foi ter entrado para a política. E não aguento mais ser rotulado de miliciano”, declara. As investigações continuam.
Publicado em VEJA de 4 de agosto de 2021, edição nº 2749