O presidente da Câmara, Arhur Lira (PP-AL), teve um final de janeiro movimentado. Encurtou as férias, voltou a Brasília e tentou convocar, sem sucesso, uma reunião de líderes antes do fim do recesso. Mesmo assim, fechou-se em encontros individuais com representantes de partidos para discutir uma série de problemas. A relação vai do cerco da Polícia Federal a deputados ao tratamento a ser dado a iniciativas do governo que criaram atritos com parlamentares, incluindo o próprio Lira. Já o chefe do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), entrou em campo na segunda 29, para pedir ao STF a lista de parlamentares que foram espionados pela “Abin paralela” que teria atuado na gestão Jair Bolsonaro— isso a pedido de congressistas governistas. Dois dias depois, reuniu-se com deputados e senadores, agora da oposição bolsonarista, que cobraram atitudes em relação ao que consideram perseguição política da PF e do STF.
O movimento intenso dos dois caciques mostra que o retorno das atividades do Parlamento estará bem longe de ser algo tranquilo. A maior pressão, ao menos na volta dos trabalhos, deverá vir do lado bolsonarista. Deputados e senadores têm tentado articular uma reação do Legislativo após as operações envolvendo os deputados Carlos Jordy (PL-RJ), líder da oposição na Câmara, por suspeita de envolvimento nos atos que levaram ao 8 de Janeiro, e Alexandre Ramagem (PL-RJ), apontado como peça-chave do esquema de espionagem ilegal da Abin. Uma das respostas que o grupo pretende dar é forçar a tramitação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para determinar que ações judiciais e investigações contra congressistas só sejam efetuadas mediante aprovação das Mesas da Câmara e do Senado. “Estamos dialogando com o Lira e ele vai conversar com o Pacheco para ver o que realmente é possível de ser votado nas duas Casas juntas”, diz o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ).
A iniciativa ganhou fôlego após outra operação, desta vez contra o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), por suspeita de envolvimento no caso Abin. Segundo interlocutores, Lira tem expressado “desconforto” com esse avanço sobre os políticos. Enquanto isso, Pacheco recebeu uma pauta da oposição que inclui emendas constitucionais para acabar com o foro privilegiado e impor mandatos aos ministros do Supremo. O grupo ameaça travar votações se os projetos não tramitarem. O presidente do Congresso ouviu tudo e não se comprometeu — disse que “vai averiguar” as demandas.
O frenesi movido pelas investidas policiais, embora tenha feito mais barulho público, não é o único grande abacaxi a ser descascado pelo Congresso na volta do recesso, na próxima segunda, 5. Um dos grandes problemas é, como sempre, a relação tumultuada com o governo Lula. Há várias bombas a serem desarmadas. A principal delas é o veto ao Orçamento que tirou 5,6 bilhões de reais das emendas de comissões. A crítica é a de que o corte atingiu ministérios chefiados pelo Centrão, como Turismo e Esporte, e poupou pastas sob o comando da esquerda, como Saúde e Justiça. “Esse veto foi para equilibrar o orçamento público, vamos discutir, vamos negociar”, declarou o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, que, em tese, é o responsável pela articulação política entre governo e Congresso.
O porém, no entanto, é que Padilha é parte do problema. Ele é famoso entre os deputados do Centrão por “sorrir demais e entregar de menos”. Lideranças partidárias não escondem a intenção de sacar o petista da cadeira. Um dos focos de irritação é o trabalho da ministra da Saúde, Nísia Trindade, apadrinhada pelo próprio Padilha (que foi titular da pasta durante quatro anos na gestão Dilma). Ela não estaria liberando as emendas no ritmo que os deputados gostariam em um ano eleitoral — uma “dificuldade desnecessária”, como resumiu um parlamentar a VEJA. O entrevero com Padilha, inclusive, teria feito com que Lira cortasse o contato com ele: a ponte com o Planalto tem sido o ministro da Casa Civil, Rui Costa, e o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), além do próprio ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
O comandante da Câmara e seus aliados veem uma espécie de boicote à liberação de verbas também no Ministério das Cidades (comandado pelo emedebista Jader Filho), apontam que Lula mantém as portas do Planalto e do Alvorada fechadas aos parlamentares e, ainda, que o governo não cumpre acordos. Em outras palavras, cobram mais acesso ao presidente, a cargos e a verbas — o que, na prática, recicla os problemas de 2023. No ano passado, Lira conseguiu, depois de ameaçar paralisar os trabalhos, emplacar aliados em três ministérios, além de levar o comando da Caixa. Agora, seu grupo está de olho no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, que pode ficar vago caso Luciana Santos confirme a candidatura à prefeitura de Olinda, e também em funções de segundo escalão, como a Funasa.
Ainda durante o recesso, Lira emitiu sinais de que o governo não começou o ano com o pé direito com o Legislativo. Em um primeiro gesto de insatisfação, ele desistiu de comparecer à cerimônia que marcou um ano do 8 de Janeiro. Para justificar a ausência, ligou para o presidente na véspera, disse considerar o ato um erro e que serviria para aumentar a polarização política, o que não ajudaria em nada a sua atuação junto a deputados dos mais diversos partidos. A interlocutores Lira também reclamou da organização do evento, encabeçada pela primeira-dama Janja, que deliberadamente excluiu o deputado do vídeo institucional transmitido na cerimônia. O caso poderia parecer menor, mas serviu para incendiar uma já ampla e complexa lista de reclamações.
Dentro desse campo minado de relações entre governo e Congresso, o ministro Haddad tem ido cada vez mais a campo para ajudar a avançar as demandas do governo no Congresso. Mas ele também terá um grande problema pela frente. O destino da MP 1.202/2023, editada a pedido de Haddad em dezembro, é um dos grandes nós a serem desatados. Em linhas gerais, ela promove a reoneração da folha de pagamento de dezessete setores produtivos e representa na prática a revogação de uma decisão do Legislativo. Houve pressão sobre Pacheco para que ele devolvesse a MP, o que não fez. Em evento promovido por VEJA em parceria com o grupo Lide em Zurique (Suíça), em janeiro, o presidente do Congresso disse haver um acordo para que o governo reedite a medida.
Outra das prioridades de Haddad é aprovar a regulamentação da reforma tributária, assim como a sua segunda fase, que prevê aliviar a tributação no Imposto de Renda para os mais pobres e elevar a cobrança dos mais ricos, uma promessa de Lula. A aplicação efetiva da reforma promulgada em dezembro depende da aprovação de projetos de lei que sequer chegaram ao Parlamento: a estimativa é a de que 71 dispositivos precisem de regulamentação.
Fora da economia, há outros grandes projetos na mira dos chefes do Congresso. Lira ainda sonha em aprovar alguma reforma administrativa, dentro da perspectiva de levar o governo a cortar gastos. Mexer com o funcionalismo enfrenta resistência do governo — se não houver um mínimo de consenso, a pauta não deve sair do lugar. O presidente da Câmara também quer tocar uma série de projetos de transição energética e mercado de carbono e tentar levar a votação o chamado PL das Fake News — o tema, apesar de também ser prioridade do governo, divide a casa. Já Pacheco pretende fazer andar a revisão do Código Civil e mudanças na legislação eleitoral, incluindo o polêmico fim da reeleição, além de pautas populares, como a discussão sobre o fim da “saidinha” temporária de presos (veja reportagem na pág. 42).
Toda essa agenda pesada chega ao debate em um período atípico para o Congresso. Primeiro, porque é ano eleitoral, e, a partir de julho, fica difícil ter quórum para votar qualquer coisa em Brasília. Além disso, será o último ano de mandato de Lira e Pacheco. Embora não possam reeleger-se, eles têm interesse em passar a cadeira para algum aliado. E isso exige não só mergulhar nas articulações de bastidores, que já estão acontecendo desde o ano passado, como conduzir as duas Casas “na ponta dos dedos” para não criar algum ruído que possa prejudicar um apoio eleitoral no futuro. Lira pleiteia uma conversa com Lula. A disputa será em fevereiro de 2025, mas o deputado quer, desde já, o apoio do governo e do PT para o nome que será indicado por ele.
Antes dessa negociação, dizem aliados de Lira, nada vai avançar. Publicamente, o chefe da Câmara tem evitado tratar do assunto e, nos bastidores, sugeriu que os três principais nomes — Marcos Pereira (Republicanos-SP), Elmar Nascimento (União-BA) e Antonio Brito (PSD-BA) — desapareçam dos holofotes para não passarem um ano sob fogo cruzado. Lira tem dito que ainda busca um perfil ideal para o posto e que não vai adotar o “coleguismo” como critério. Ter um aliado no comando da Câmara é tratado como prioridade de Lira, que quer manter a influência quando voltar para a planície. Ele vislumbra disputar uma cadeira ao Senado em 2026, o que lhe exige manter o protagonismo até lá. Pessoas de sua estrita confiança não descartam que Lira assuma algum ministério, o que ele, claro, não admite publicamente. No Senado, o candidato de Pacheco deve ser Davi Alcolumbre (União-AP), que tem boa relação com Lula, o que diminui a possibilidade de a sucessão prejudicar a relação com o governo. Mas a ala bolsonarista, que tem muito peso na Casa, deve ir para o embate eleitoral interno.
A conjunção de vários fatores vai exigir dos líderes muito tato para ir costurando os acordos possíveis. Embora boa parte da tensão que cerca o Legislativo tenha a ver com fatores de ordem policial, judicial e eleitoral, é bom ter em vista que há uma extensa agenda de projetos prioritários, cujo maior interessado é o país. Como bem ensina Paulinho da Viola, nesse contexto, é preciso que se “faça como um velho marinheiro, que durante o nevoeiro leva o barco devagar”. Devagar, com firmeza e na direção certa.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2024, edição nº 2878