Em nenhum lugar do mundo pessoas de diferentes etnias se misturaram tanto quanto no Brasil. Um giro pelo centro urbano de qualquer grande cidade do país revela uma vasta paleta de tons de pele, fruto da mistura praticada aqui das características de ao menos 54 populações espalhadas pelo globo, conforme aponta o projeto DNA Brasil, da USP, que investiga o genoma do povo brasileiro. Do caldeirão da miscigenação, inflamado desde os tempos do descobrimento pela tensão social entre europeus colonizadores, africanos escravizados e povos originários, surgiu uma significativa parcela da sociedade nem nitidamente branca, nem explicitamente preta, que se optou por reunir sob uma única definição: parda. Por motivos diversos, sendo o mais visível deles um progressivo — e altivo — reconhecimento dos antepassados, os pardos se tornaram maioria da população. Pela primeira vez desde o Censo demográfico pioneiro, de 1872, um total de 92,1 milhões de pessoas assim se declaram, o que corresponde a 45,3% dos brasileiros, ultrapassando os 43,1% de brancos (veja no gráfico).
Trata-se, sem dúvida, de um avanço: os pardos estão perdendo a vergonha da definição e se mostrando cada vez mais dispostos a alardear as raízes. Ao mesmo tempo, porém, a virada escancara os preconceitos e as dificuldades enfrentadas por essa maioria de brasileiros que não se situa nem lá, nem cá na conflituosa questão racial. Os dilemas da “parditude” foram expostos neste início de ano escolar nos casos de candidatos que recorreram às cotas raciais para concorrer a uma vaga na universidade, foram aprovados em todas as etapas do processo e acabaram barrados na última — uma comissão criada para evitar fraudes. Depois de garantir seu lugar no concorrido curso de direito da Universidade de São Paulo (USP), Glauco Dalalio do Livramento, 18 anos, filho de um auxiliar de pedreiro também pardo, teve a matrícula negada por não atender aos critérios da chamada banca de heteroidentificação, que bate o martelo do acesso ou não à vaga com base nos traços físicos mostrados em uma foto do candidato. “Fiquei chocado, porque desde sempre sofro com o racismo”, disse Livramento a VEJA. “Já fui alvo de muito xingamento.” A situação só foi revertida por decisão da 14ª Vara da Fazenda de São Paulo, que entendeu ser o pai do estudante, sim, de raça negra. “Comemorei a decisão como se tivesse sido aprovado de novo no vestibular”, afirma o jovem, que sonha em ingressar na magistratura. Dos 1 606 vestibulandos cotistas analisados na USP em 2024, 187 (12%) foram rejeitados e uma parte do grupo planeja ingressar com uma ação coletiva contra a universidade.
Implantada desde 2012 no país, a lei de cotas vem cumprindo seu objetivo de abrir oportunidades para uma parcela da população consistentemente excluída do ensino superior e que, ao chegar lá, mostrou talento, esforço e até mais persistência do que alunos não cotistas. No processo de ingresso, o aspecto racial é a última peneira — antes dele, leva-se em conta se o candidato é egresso de escolas públicas e se a renda familiar por pessoa é inferior a um salário mínimo. Na etapa final, analisa-se se ele se enquadra na definição de preto, pardo ou indígena, reunidos sob a sigla PPI, e aí a situação dos pardos — indivíduos de feições mescladas — se complica. “Não analisamos apenas o tom da pele, mas como o indivíduo é percebido pela sociedade, já que o racismo se apresenta no Brasil pela aparência”, diz Ana Paula da Silva, da Assessoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade da Universidade Federal Fluminense (UFF). A metodologia, longe de infalível, vira e mexe promove distorções. Filho de pai preto e mãe branca, Pedro Vaz, 28 anos, viu-se na esdrúxula situação de ser reprovado pela comissão que analisou seu ingresso no curso de direito depois de ter se graduado em educação física como cotista. “Senti minha identidade e história negadas. Foi humilhante”, desabafa Vaz, que levou o caso à Justiça.
Os pardos foram incluídos na política de cotas porque a análise de indicadores sociais mostra que a sua realidade está muito próxima da dos pretos. “Em todos os parâmetros relevantes para a mobilidade social — educação, moradia, renda, entre outros — se observa uma semelhança inequívoca entre os dois grupos”, aponta o economista Ricardo Henriques, autor de diversos estudos sobre raça no sistema de ensino. Nas bancas universitárias, contudo, os pardos perdem chances porque são muitas vezes enquadrados como “quase brancos” e, portanto, supostamente mais favorecidos. Diversos integrantes de comissões admitiram à reportagem de VEJA, sob condição de anonimato, que colegas ligados ao movimento negro não reconhecem as dores de quem tem pele mais clara. “Existe uma ilusão de que os pardos gozam de certos privilégios por possuírem traços brancos, o que não é verdade”, diz Beatriz Bueno, pesquisadora da UFF que compartilha no Instagram reflexões sobre essa classificação racial.
Para definir quem é branco ou preto, outras nações multirraciais, como Estados Unidos e África do Sul, adotam o método conhecido como “única gota de sangue”, em que a ascendência determina a etnia, independentemente dos traços físicos. O método é aceito porque neles a miscigenação é exceção, levantando poucas dúvidas sobre o DNA do indivíduo — o que tem o efeito colateral de tornar a discriminação mais explícita. Já a adoção de características físicas para definir quem tem acesso às políticas afirmativas é uma dinâmica exclusivamente brasileira, que põe na berlinda um imenso contingente de brasileiros que não são nem brancos, nem pretos. É munição ao preconceito. Ativistas têm alertado para os perigos da hierarquização de tons de pele para definir como pessoas negras são tratadas, um fenômeno que ganhou o nome de “colorismo”. “Não adianta criar espaços para pretos se o mesmo gradiente de cores seguir pregando a falsa ideia de superioridade branca em relação aos pardos”, diz a advogada Alessandra Devulsky, autora de um livro sobre o tema. “Ou destruímos essa ideia, ou não combateremos o racismo.”
Em Casa-Grande & Senzala, uma das mais relevantes obras da sociologia nacional, lançada na década de 1930, Gilberto Freyre (1900-1987) estabeleceu que a mestiçagem era um fator capaz de mitigar a violência imposta pelos brancos durante a colonização europeia. O conceito foi traduzido por outros pensadores como “democracia racial”, que só anos mais tarde passou a ser contestado por uma nova corrente de pensamento, encabeçada por Florestan Fernandes (1920-1995), para quem o racismo no país era escamoteado por relações de dominação menos explícitas. Livres dos grilhões do período colonial e do império, os negros foram aprisionados nas margens da sociedade e, com eles, muitos “mulatos” — designação de escravos libertos, frutos de relações sexuais nem sempre consentidas entre homens brancos e mulheres pretas. A palavra, hoje devidamente banida do vocabulário civilizado, deriva de mula, animal resultante do cruzamento de cavalos com jumentos.
Nos tempos atuais, em que a questão racial vem sendo discutida de maneira mais aberta e explosiva, declarar-se pardo virou questão de honra para muita gente. Durante toda a infância, a consultora Ana Carolina Rodrigues, 29 anos, parda, ouviu da avó branca que era a neta com “um pezinho na senzala”. “Ia à praia de jeans porque não queria ficar com a pele mais escura”, conta Ana, que vestiu biquíni pela primeira vez aos 20 anos, depois que passou a frequentar coletivos do movimento negro na faculdade. “Nas famílias inter-raciais, é comum que a herança africana seja apresentada apenas sob o filtro da escravidão ou do sofrimento do racismo”, aponta Lia Vainer, professora de psicologia da UFSC. Quem é acusado de ter “tinta fraca”, outro termo pejorativo comum na vida dos pardos, sente rejeição de todos os lados. “Quando finalmente resolvi assumir minha cor, fiz tranças afro no cabelo, mas fui hostilizada por pessoas pretas, que me acusaram de apropriação cultural”, relata a estudante Ana Clara Cunha Rodrigues, 21 anos.
A emergência de reflexões sobre a “parditude” estimula um debate necessário em um mundo ainda marcado por profundas desigualdades raciais, mas a contrapartida, neste planeta rachado pela polarização, são assustadoras ameaças a direitos civis conquistados a duras penas. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte, de maioria conservadora, declarou inconstitucional a política de cotas em vigor nas mais conceituadas universidades americanas desde a década de 1960. Na Flórida, comandada pelo republicano Ron DeSantis, o governo proibiu que sejam abordados criticamente temas como o racismo nas escolas, sob pena de ferir uma certa “lei de liberdade individual”, criada para impedir que os alunos “sintam culpa ou vergonha” de sua raça por causa de eventos históricos como a escravidão. Cursos avançados sobre história da África também foram banidos das universidades estaduais.
No Brasil, autoridades de certos estados decidiram retirar das salas de aula, sob a alegação de conteúdo impróprio, o bem-sucedido livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, que trata justamente de racismo (leia a entrevista). Em pleno século XXI, pareceria inadmissível recorrer ao conceito de raça — circunstância que não muda em absolutamente nada a capacidade do indivíduo — para classificar a humanidade. No entanto, ele está aí, vivo e presente, atropelando as oportunidades de quem mais precisa, e é urgente revê-lo. Afinal, nenhum ponto dessa discussão é preto no branco.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2024, edição nº 2885