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Se usada com cuidado em tempos de coronavírus, a praia faz bem

As areias lotadas de gente sem máscara no Rio de Janeiro são um retrato do desperdício de uma área ao ar livre que pode até ser boa à saúde na pandemia

Por Sofia Cerqueira Atualizado em 4 jun 2024, 13h42 - Publicado em 31 jul 2020, 06h00
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  • Com os termômetros beirando 28 graus, o sol ameno do inverno e um mar incrivelmente claro, as praias do Rio Janeiro nos fins de semana têm sido um convite a relaxar na areia e a dar bons mergulhos. Um simples passeio pela orla, o espaço mais democrático da cidade e enraizado na cultura dos cariocas, confirma o previsível: praias lotadas. Nada demais, não fosse proibido. Por decisão da prefeitura, bronzear-se ou simplesmente bater papo à beira do mar não pode. Nadar e surfar pode. Caminhar não pode, ou melhor, pode, se for como exercício. Vôlei e tênis de praia podem — mas só de segunda a sexta. Em meio a esse cipoal de regras, o que o carioca tem feito é o mais errado: ignorar todas as normas e aglomerar-se, em meio a ambulantes passando pertinho, como se não houvesse um novo coronavírus no ar. “A falta de clareza e o excesso de regras dão margem a interpretações dúbias e deixam todo mundo confuso”, critica Carlos Machado, doutor em saúde pública e coordenador do Observatório Covid-19 da Fiocruz, responsável por produzir e reunir informações que ajudem a combater a pandemia.

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    CONFUSÃO - Regiane Alves, que foi acompanhar o surfe dos filhos: “Sai uma notícia de manhã é à tarde já é outra” – (Dilson Silva/AgNews)

    O mais triste é que a praia, com ordem e responsabilidade, é um bom lugar para espairecer e esquecer as agruras deste infeliz 2020. O ar livre é mais indicado do que locais fechados, como shopping centers — que estão liberados. Quando a pessoa tosse ou espirra, libera um volume de partículas virais 10 milhões de vezes maior do que quando respira e, segundo pesquisas recentes, em lugares sem muita circulação de ar esses aeros­sóis permanecem em suspensão por horas e até dias. “Em ambientes abertos e onde costuma ventar, como as praias, mantendo as regras de segurança, o risco de infecção é muito baixo. As partículas se diluem e se dissipam com mais facilidade”, explica Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. “Em vez de simplesmente vetar, que é a medida mais fácil, o ideal seria criar um plano de convivência que reduza os riscos e ajude a promover a saúde. Só que isso requer um esforço de planejamento muito maior”, acrescenta Machado, da Fiocruz.

    O município do Rio de Janeiro vem adotando regras de flexibilização da quarentena desde junho. Já liberou serviços religiosos nos templos, permitiu a reabertura de shoppings e bares e planeja a volta às aulas nas escolas em agosto. Mas ir à praia está vetado, e por prazo indeterminado. “O banho de mar e o acesso de banhistas à areia só serão possíveis no momento em que tenhamos uma vacina eficaz ou um antirretroviral, ou quando os níveis de contaminação estiverem próximos de zero”, decretou o prefeito Marcelo Crivella, que posteriormente amenizou a proibição, autorizando a prática de esportes dentro d’água e na areia nos dias de semana. Como a fiscalização é reduzida, a medida entrou no rol das ordens que não pegaram, com os riscos à saúde que isso acarreta. De acordo com o balanço da prefeitura, no último fim de semana de julho, ao longo dos 72,3 quilômetros de orla apinhada, guardas municipais orientaram cerca de 500 pessoas a sair da areia e aplicaram multa de 107 reais a 172 infratores — uma minúscula amostra — que não usavam máscara.

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    SEM AGLOMERAÇÃO - Parque em Nova York: população coopera na manutenção do distanciamento – (Clement Mohoudeau/AFP)

    A confusão de regras causa protestos generalizados. “Só fui à praia para acompanhar os meninos, que iam fazer um teste para aulas de surfe. Não está claro o que pode e o que não pode. Às vezes sai uma notícia de manhã e à tarde já é outra”, justifica a atriz Regiane Alves, fotografada com os dois filhos, que carregavam pranchas de bodyboard, nas areias da Barra da Tijuca, na sexta-feira 24. Para a professora de saúde pública Ligia Bahia, da UFRJ, a desorganização no Rio é agravada pela incoerência do cronograma para a retomada das atividades. “As medidas não são pautadas em critérios epidemiológicos. Não há lógica em liberar grandes aglomerações, como os camelódromos, e lugares fechados, como os shoppings, e continuar proibindo o banho de mar”, afirma.

    Fora do Brasil, a chegada do verão ao Hemisfério Norte incentivou os balneários a criar regras rigorosas para o lazer na areia. Em La Grande-Motte, no sul da França, a máxima de cada um no seu quadrado é seguida ao pé da letra. Além de o número de banhistas ser limitado e o tempo de permanência estar reduzido — as reservas (sim, tem de reservar com antecedência) estão disponíveis das 9 às 12h30 e das 14 às 17h30 —, a área foi demarcada por cordas, com espaços para duas, quatro ou seis pessoas. Várias praias da Espanha também adotaram os cercadinhos, além de recursos tecnológicos. O município de Lloret de Mar, perto de Barcelona, usa drones para detectar a quantidade de frequentadores nas praias. A Bélgica instalou um sistema que monitora pontos de concentração através de sensores e do rastreamento de aparelhos de celulares, dando ao banhista a chance de escolher lugares mais vazios para estender sua canga. Em Portugal, o afastamento é praticado com medidas bem mais simples: distância de pelo menos 1,5 metro entre grupos de não mais de dez pessoas e de 3 metros entre as barracas. Nos bares da orla, podem se acomodar no máximo cinco pessoas por mesa.

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    CERCADINHO - La Grande-Motte, no sul da França: reserva de horário e espaço delimitado por cordas – (Johannes Eisele/AFP)

    Para a reabertura das praias dar certo é preciso, além de regras claras, a fundamental colaboração dos frequentadores — este, um ponto fraquíssimo dos brasileiros até agora. Em Salvador, também com praias proibidas desde março, banhistas invadem até os trechos da orla fechados por cercas. Em Praia Grande, litoral sul de São Paulo, só está autorizada a prática de atividades individuais entre 5 e 10 horas, mas o que se vê é praia cheia de gente sem máscara, item obrigatório — e igualmente desrespeitado —, em quase toda parte. A Praia de Iracema, em Fortaleza, foi palco de um “encontrão” marcado pelas redes sociais que precisou ser dispersado pela polícia. Em Pipa, no Rio Grande do Norte, a prefeitura do município de Tibau do Sul radicalizou: a multa para quem descumprir o distanciamento mandatório é de até 3 000 reais. Fora do Brasil a ida à praia é mais organizada, mas violações também acontecem. Em Bournemouth, no sul do Reino Unido, a superlotação há poucos dias levou o governo britânico a ameaçar fechar a orla. Em Barcelona, no fim de julho, o acesso a uma praia foi interditado por excesso de banhistas, e o resultado foram longas filas de espera, sem nenhum distanciamento.

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    À luz da ciência, na pandemia o ambiente ao ar livre, seja parque, seja praia, faz bem à saúde e é seguro, desde que as pessoas não se amontoem e cubram a boca e o nariz. Segundo a pesquisadora Fernanda Pereira Ávila, da Universidade Federal Fluminense, que integra um estudo multinacional sobre máscaras, dentro de um período de duas horas, as proteções faciais devem ser trocadas algumas vezes por causa da umidade provocada por suor, sal e brisa marítima. Garantida a proteção básica, o sol e a rotina à beira-­mar aumentam a produção de vitamina D, reforçam o sistema imunológico e têm, inclusive, benefícios psicológicos. “Há evidências de que o barulho do mar reduz o nível de cortisol, o hormônio do stress, produzindo um efeito calmante”, diz a psiquiatra Analice Gigliotti, da Santa Casa da Misericórdia carioca. Difícil, em uma cidade litorânea, viver sem a proximidade desse barulhinho bom.

    Publicado em VEJA de 5 de agosto de 2020, edição nº 2698

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