Por mais inacreditável que pareça, a história a seguir aconteceu a menos de 10 quilômetros da Praça dos Três Poderes, em Brasília. Em abril, no início da pandemia do coronavírus, o governo do Distrito Federal, seguindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde, decidiu comprar um lote de 100 000 testes rápidos para detectar a doença. Na época, a Covid já havia matado 28 pessoas e infectado outras 1 300 na capital do país. Os números ainda não assustavam tanto, mas era preciso correr contra o tempo — e o governo local correu. Em 48 horas, iniciou e concluiu o processo para escolher o fornecedor dos kits. Simultaneamente, também em caráter de urgência, contratou uma empresa para montar as tendas de atendimento à população e processar os exames laboratoriais. Valor do negócio: 73 milhões de reais. Pois, segundo o Ministério Público, foi tudo uma grande fraude. O edital da concorrência foi redigido pelos próprios empresários que venceram a disputa, os preços estavam superfaturados e o mais repugnante, cruel e desumano: os testes eram fajutos.
Na última terça-feira, 25, a polícia foi atrás de 25 pessoas envolvidas no golpe. A roubalheira foi tão escancarada que a empresa que venceu a licitação dos kits, uma importadora de brinquedos, recebeu o pagamento antes mesmo de sair o resultado da concorrência e os testes, supostamente comprados por ela na China, poderiam, no máximo, indicar uma contaminação por hepatite C. O resultado é que seres humanos podem ter morrido de Covid-19, enganados por um falso resultado negativo. O secretário de Saúde Francisco Araújo Filho foi preso e apontado como líder da organização criminosa. Ex-secretário de Ação Social de Maceió, ele estava no cargo havia cinco meses. “O secretário é do grupo do senador Renan Calheiros. É esquema do MDB de Alagoas”, acusou o deputado distrital Chico Vigilante (PT). O governador Ibaneis Rocha (MDB) nega. Diz que Francisco é seu conhecido, que não houve indicação política e que há pontos obscuros nessa história que ainda precisam ser esclarecidos. No último balanço antes do fechamento desta edição, Brasília contabilizava 2 399 mortes e 155 000 pessoas infectadas.
O caso dos kits chama atenção pela ousadia, por ter acontecido no nariz das maiores autoridades do país e por revelar a disseminação de outro vírus letal. Enquanto o país contabilizava as primeiras vítimas da doença, políticos desonestos, funcionários públicos corruptos, empresários inescrupulosos e aproveitadores em geral já estavam a postos em todos os cantos tramando uma forma de ganhar algum à custa do sofrimento alheio, mirando, como sempre, os cofres públicos. De norte a sul, já foram descobertos esquemas para superfaturar contratos, fraudar compras de equipamentos médicos e desviar recursos destinados ao combate à doença. Há investigações em andamento em todos os 26 estados, além do Distrito Federal. Os prejuízos estimados beiram os 4 bilhões de reais.
VEJA teve acesso a um documento da Polícia Federal que mostra a extensão e a dimensão das fraudes. Há 39 investigações em andamento desde o início da pandemia. A primeira foi aberta na Paraíba, em 23 de abril. A última, no Piauí, há pouco mais de quinze dias. O avanço dos criminosos sobre o dinheiro destinado à pandemia é tamanho que a PF criou uma central em Brasília apenas para acompanhar o andamento dos inquéritos que apuram o destino de verbas repassadas pelo governo federal aos estados e municípios. Investigadores já esquadrinharam quase 1,3 bilhão de reais em contratos firmados por prefeitos e governadores e estimam que o prejuízo aos cofres públicos, apenas nesses casos, pode ter chegado a 775 milhões de reais, o que representa 60% dos valores. Ou seja, mais da metade do dinheiro que foi enviado para ações sanitárias acabou ilegalmente no bolso de alguém. Os inquéritos envolvem mais de 300 pessoas, entre servidores públicos, empresários, vereadores, prefeitos, deputados estaduais e federais e pelo menos seis governadores — três deles já foram alvos diretos de operações: Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, Wilson Lima, do Amazonas, e Hélder Barbalho, do Pará. Trinta e nove pessoas foram presas até agora.
Os golpes seguem a cartilha tradicional que mistura política com negócios. A lei que dispensou a exigência de licitação e permitiu compras governamentais mais ágeis e desburocratizadas durante a pandemia também abriu caminho para toda sorte de golpes. Alguns de extrema audácia. Com pequenas variações, boa parte das fraudes funciona assim: um operador promove a aproximação de quem quer comprar com quem pretende vender — e cobra uma taxa de sucesso sobre o negócio. Essa taxa, paga pelo empresário que vendeu, normalmente é embutida no valor da mercadoria ou do serviço oferecido, o que leva ao superfaturamento dos preços. Por fim, ela é dividida entre algum político e/ou funcionário público, ambos atuando em parceria. Bem conhecida dos brasileiros, essa engrenagem foi movimentada pela pandemia de uma maneira que fazia tempos não se via. A bandalheira foi tamanha que uma empresa especialista em venda e instalação de ventiladores de teto foi contratada para fornecer equipamentos de ventilação pulmonar usados por pacientes em estado grave. Uma outra, de autopeças, disputou e ganhou uma concorrência para fornecer equipamentos de reposição para sofisticados aparelhos hospitalares. Por óbvio, nenhuma das duas entregou o prometido, e o dinheiro desapareceu.
Em Rondônia, o governo comprou máscaras de proteção para uso profissional. O preço de mercado de cada uma era 2,58 reais, mas foi vendida à Secretaria de Saúde local por 15,30 reais, uma majoração de 500%. Isso, por si só, já seria ilegal. Mas a tramoia era ainda maior: as máscaras que foram entregues nada tinham de profissionais. Eram cópias feitas de pano. O lote de 20 000 unidades teve de ser inutilizado. Uma piada de mau gosto. No Maranhão, quando o estado entrava no ápice dos casos de Covid, foi a vez de uma empresa sem nenhum funcionário e sem expertise alguma na atividade médico-hospitalar ser contratada para vender respiradores a três prefeituras, que pagaram antecipadamente pelos equipamentos — que, óbvio, nunca receberam. Quatro pessoas foram presas.
Segundo a Polícia Federal, a simulação de compra e venda de respiradores é um dos crimes mais recorrentes na pandemia. No novo normal, os preços de mercado do equipamento, geralmente importado da China, variam de 90 000 a 100 000 reais. Para alguns governos e prefeituras, eles custaram o dobro. Houve casos de um único respirador ser orçado em cerca de 370 000 reais. No Rio Grande do Sul, a PF flagrou um político em um grampo telefônico orientando funcionários de um hospital a pulverizar a cidade com vapor d’água no lugar de materiais desinfetantes “porque ninguém ia perceber”. Em São Paulo, uma das investigações apura desvios em um contrato de 11 milhões de reais que envolve o fornecimento de aventais hospitalares. De novo, os indicativos são de conluio de servidores com empresas sem nenhum preparo técnico. No Pará, um dos inquéritos apura desvios em um contrato de cerca de 74 milhões de reais para compra de cestas básicas para alunos da rede estadual de ensino. Com o isolamento social, crianças que tinham a merenda como principal ou única refeição do dia passaram a receber os alimentos em casa. O Pará, aliás, já foi alvo de quatro operações da PF desde abril, o que o coloca, empatado com o Rio de Janeiro, como o terceiro estado com maior número de irregularidades investigadas, atrás de Pernambuco e do Amapá.
A lista, como se vê, é longa. Os 39 inquéritos da Polícia Federal revelam a dimensão da miséria moral de um pedaço da sociedade brasileira. Os desvios, porém, são muito maiores. A Controladoria-Geral da União (CGU) estima um rombo de pelo menos mais 3 bilhões de reais em fraudes no auxílio emergencial do governo. Esses casos ainda serão minuciosamente apurados pela PF, que já identificou situações em que grupos organizados falsificaram cadastros e receberam os pagamentos no lugar de pessoas humildes, que ficaram sem o dinheiro. Uma covardia. A audácia das quadrilhas não tem limites. No Paraná, empresários venderam a um órgão público um carregamento de álcool em gel que, em sua composição, tinha muito gel e quase nenhum álcool. Em outras palavras, não servia para nada. O órgão público foi a própria Polícia Federal. “A Covid deve bater a Copa do Mundo em casos de corrupção e volume de desvios”, estima um investigador do caso, admitindo que, até o fim da pandemia, as fraudes podem atingir cifras ainda maiores. Essa doença, pelo visto, não tem cura.
Com reportagem de Hugo Marques
Publicado em VEJA de 2 de setembro de 2020, edição nº 2702