Sistema de fiscalização do TSE não funcionou durante eleições municipais
OEA expôs falha em relatório; o presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, reconhece o problema e anuncia providências
O principal instrumento de fiscalização do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) não foi usado durante as eleições do ano passado, a maior da história do país, na qual cerca de 500.000 cidadãos disputaram cadeiras em todas as prefeituras e Câmaras municipais do Brasil. A magnitude do processo é proporcional ao tamanho do problema.
O programa que cruza as informações prestadas pelos candidatos com outros bancos de dados, como os da Receita Federal e do Tribunal de Contas da União (TCU), teve que passar por uma atualização e só ficou pronto no dia 21 de dezembro, dois meses depois do previsto, quando as eleições já haviam acabado.
Na ocasião, já haviam ocorrido até as diplomações, ato pelo qual a Justiça Eleitoral referenda a eleição dos candidatos mais votados e atesta quais estão aptos a tomar posse. O primeiro turno se deu em 15 de novembro e o segundo no dia 29 do mesmo mês. Apenas no Amapá, estado atingido por um apagão no final de 2020, os pleitos ocorreram em 6 e 20 de dezembro respectivamente.
O software entregue com atraso não ficava de fora de uma eleição desde 2008, quando uma outra falha também impediu que fosse utilizado no pleito daquele ano. Ele é capaz de verificar se a quantia que um partido declarou ter repassado a seus candidatos de fato foi enviada; além de facilitar a identificação de prestadores de serviços (uma gráfica, por exemplo) criados às vésperas da eleição, comumente usados para desviar recursos de campanha. Também pode descobrir se há doadores inscritos em programas do governo de combate à miséria, como o Bolsa Família, entre outras funcionalidades.
Nada disso pôde ser feito pelo TSE no curso da eleição, só depois dela: mais precisamente, quase um mês após o fechamento das últimas urnas e, portanto, sabe-se lá quanto tempo depois de eventuais malfeitos praticados. Há fortes indícios de que o dinheiro escoou para além dos caixas de campanha.
Uma reportagem publicada pelo jornal O Globo, no dia 30 de janeiro, revelou que candidatos nas últimas eleições gastaram pelo menos R$ 16 milhões contratando empresas de correligionários. Nesta semana, o jornal Folha de S.Paulo mostrou que o custo médio por voto de uma candidata chega a ser 70 vezes superior ao dos postulantes do sexo masculino. A discrepância indica que os partidos usaram mulheres como cabeças de candidaturas laranjas para cumprir a cota mínima de participação feminina exigida pela Legislação.
Os dois casos descobertos pela imprensa poderiam ter ser sido fisgados pelo programa do TSE, caso estivesse operante. Isso porque os candidatos são obrigados a entregar duas prestações de contas: uma parcial, no dia 25 de outubro, e outra final, em 15 de dezembro. Além disso, no curso da campanha, eles têm 72 horas para informar cada receita e despesa da campanha.
A falta do instrumento automatizado de fiscalização chamou a atenção de organismos internacionais. Integrantes da Missão de Observação Internacional da Organização dos Estados Americanos (OEA) visitaram o Brasil durante a campanha e elaboraram um relatório sobre as eleições municipais. Nele, apontaram o problema:
“O modelo de prestação de contas e a sua revisão apresentam importantes dificuldades e ineficiência. Esta situação se deve ao fato de que os recursos humanos para a fiscalização das contas ainda são insuficientes considerando o volume de trabalho. Isso explica, em parte, as demoras evidenciadas no julgamento das contas de processos eleitorais anteriores. A Missão adverte, por último, que até o momento, o desenvolvimento do módulo tecnológico que a Justiça Eleitoral utiliza para a análise automática das contas de campanhas não foi concluído”.
O presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, admite que tinha ciência do problema e reconhece a sua gravidade. Porém, ele sustenta que, embora tardiamente, todas as contas serão analisadas, o que, segundo o ministro, afasta a possibilidade de a situação gerar prejuízos ao processo eleitoral.
Barroso adianta que tomou providências recentemente. Na última segunda-feira, 8, ele se reuniu com responsáveis pela área de Tecnologia da Informação do tribunal e acertou a formação de um grupo de trabalho para implementar mudanças.
“O sistema de prestação de contas precisa ser revisto, tanto em aspectos legislativos quanto operacionais. O sistema não funciona bem: é formal e burocrático. Passadas as eleições, o TSE vai se empenhar em aprimorá-lo”, reconhece o presidente do tribunal.
Problema na ponta
A ausência da ferramenta provocou uma queixaria entre os Tribunais Regionais Eleitorais. País afora, TREs enviaram ofícios ao TSE para cobrar uma solução. Expunham preocupação com o risco de o atraso afetar não apenas a fiscalização no meio da eleição, como também o julgamento das contas dos candidatos eleitos, cujo prazo se encerra nesta sexta-feira, 12.
VEJA conversou com alguns dos responsáveis por TREs, sob a condição de anonimato. Parte desses especialistas em Justiça Eleitoral considera incalculáveis os possíveis danos provocados pelo atraso na entrega do programa. Eles argumentam que, se o trabalho tivesse sido feito durante a campanha, eventuais irregularidades poderiam ter sido evitadas, como uma gráfica fantasma prestar serviço a diferentes chapas, por exemplo. Uma vez identificada, há medidas para impedi-la de repetir a dose com outros candidatos.
Alguns dos representantes de TREs, no entanto, dizem que o software não fez tanta falta, de acordo com eles, por ser pouco eficiente na tarefa da escrutinar os dados e emitir informações precisas a partir dos cruzamentos. Para essa turma, ele deveria ser perfeiçoado urgentemente.
Apesar do buraco deixado pelo TSE, cuja principal atividade é zelar pela lisura do sistema eleitoral, não se pode dizer que a eleição de 2020 transcorreu ao largo dos olhos do Estado.
A fiscalização foi feita pelo chamado Núcleo de Inteligência da Justiça Eleitoral, o Nije, formado por integrantes do próprio tribunal, assim como do Ministério Público, da Polícia Federal, da Receita, do TCU e do Coaf. O grupo identificou no pleito do ano passado 221 mil indícios de irregularidades, que envolveram cerca de 950 milhões de reais.
Marcelo Issa, diretor-executivo do Movimento Transparência Partidária, diz que desde 2016 dialoga com o TSE e expõe a necessidade de se investir em instrumentos eficazes para auditar contas de partidos e chapas eleitorais.
“Essa falha na eleição de 2020 revela um comprometimento grave no ponto de vista da gestão de recursos públicos. A Justiça Eleitoral dispõe de quantias bem significativas e, ainda assim, não é capaz de oferecer um sistema de fiscalização rigoroso e eficaz. Do ponto de vista da democracia, também é grave porque eventuais desvios cometidos e não identificados podem comprometer a vontade do eleitor que põe seu voto na urna”.
Outro lado
O TSE argumenta que o atraso na entrega do módulo de análise das contas se deu em consequência da pandemia. Afirma que praticamente todos os servidores estavam em teletrabalho e que tanto o adiamento das eleições, de outubro para novembro, quanto as mudanças nas regras de partilha do fundo partidário exigiram atualizações de praticamente todos o sistema.
“A entrega em data posterior à prevista de fato trouxe embaraço à fiscalização automatizada das contas durante o curso da campanha, mas não impediu a divulgação e o controle das informações em tempo real. Isso porque as contas parciais foram devidamente prestadas no prazo e estiveram disponíveis no site do TSE, permitindo a atuação de órgãos de fiscalização do Estado em sua esfera de competência”, afirmou o tribunal em nota.